26 de maio de 2012

Rio+20: economia verde para salvar o Planeta ou o capitalismo?

Colocar no centro das soluções a "economia verde" é, em termos gerais, justo. O problema é quando esta transição verde não questiona nem transforma os fundamentos da economia que existe, o capitalismo.
 
Colocar no centro das soluções a "economia verde" é, em termos gerais, justo. O problema é quando esta transição verde não questiona nem transforma os fundamentos da economia que existe, o capitalismo.
Nos dias 20 a 22 de Junho os líderes mundiais juntam-se na Conferência da ONU sobre "Desenvolvimento Sustentável", intitulada Rio+20. A sua antecessora ocorreu 20 anos antes sob o lema "Ambiente e Desenvolvimento", mais conhecida por Cúpula da Terra ou Rio 92. O ano de 2012 será então palco do 2º maior encontro internacional sobre ambiente, onde se esperam compromissos políticos para a sustentabilidade.

Se o nome da Conferência em 2012 torna evidente a popularização e institucionalização do conceito de desenvolvimento sustentável iniciada em 1992, poucos anos após ter sido publicado o relatório de Bruntland (1987), o seu conteúdo continua a ter um elevado grau de indefinição e a ser disputado por várias linhas de pensamento com diferentes propostas de saída para o desastre ambiental.
A sua definição original - garantir que as futuras gerações tenham a mesma capacidade para suprir as suas necessidades que as gerações atuais, encerra dentro de si muitos caminhos divergentes. Tal como no relatório de Bruntland, esta Conferência assume claramente um desses caminhos e chama-o de "economia verde".

Esse caminho é o de que tem subjacente a assunção de que os problemas ambientais resultam de uma falha de mercado que precisa de ser corrigida pelas políticas através de afinamentos dos mercados existentes, da criação de novos mercados onde há escassez ambiental que cria valor, de definição de direitos de propriedade privados sobre os recursos ambientais, e de privilegiar os sinais de preços como instrumento de correção de comportamentos. Esta falha não é, portanto, entendida como uma falha do capitalismo e de que este sistema económico e de modelo de sociedade encerra dentro de si as condições da destruição ambiental e, por isso, por mais corretivos que lhe sejam feitos, ele é incapaz de providenciar caminhos para um futuro sustentável.

Colocar no centro das soluções a "economia verde" é, em termos gerais, justo. Os problemas ambientais resultam do modo como o capitalismo organiza a produção, a distribuição e o consumo e, transversalmente, molda a cultura de sociedade. Trata-se, portanto, de um problema de economia. Que é necessária uma transição verde para integrar na economia os limites físicos do Planeta e evitar mudanças bruscas nos equilíbrios nos ecossistemas é o que pode garantir as nossas condições de sustento presentes e futuras. O problema é quando esta transição verde não questiona nem transforma os fundamentos da economia que existe, o capitalismo.

É certo que existem vários tipos de capitalismo, mais liberal ou mais controlado pelo Estado. Em qualquer dos casos, um sistema que tem no seu código genético a lógica de produção de valor de troca e da acumulação de capital para ter estabilidade precisa sempre de crescer materialmente num Planeta que é finito, mesmo que ciclicamente seja pontuado por crises como a que vivemos hoje. Por isso, sem mudar esta economia não temos saída ambiental.

Dentro desta visão de transição verde há duas posições que se destacam, cujas propostas políticas, apesar de terem pontos de partida antagónicos, acabam por se cruzar muitas vezes.

Uma posição, que enforma as da Conferência, é a de que o progresso tecnológico é capaz de responder à crise ambiental através de uma maior eficiência no uso dos recursos. Portanto, mesmo reconhecendo a existência de limites físicos, a tecnologia e o investimento de capital são entendidos como capazes de substituir, em grande parte, o consumo de recursos naturais. Sendo o capitalismo uma fonte de constante inovação tecnológica, basta então dar-lhe os sinais certos para reorientar esse processo. E esses sinais certos podem passar por refletir nos preços a escassez dos recursos para incentivar a mudança tecnológica e dos comportamentos, sem olhar para as suas consequências sociais. Funcionaria, assim, o austeritarismo de mercado, afetando especialmente as mais pobres.

Outra posição, é a de que há limites físicos que não podem ser ultrapassados e que, portanto, é preciso reduzir a produção e o consumo para manter o sistema dentro de limites aceitáveis. Ou seja, neste campo funcionaria o austeritarismo verde planeado (mesmo que conjugado com preocupações de equidade) e aqui enquadram-se muitas das propostas dos defensores do decrescimento (e também da economia de estado estacionário).

Não é que uma parte destes defensores não coloque o dedo na ferida: questionam a lógica de crescimento infinito do capitalismo, do seu produtivismo e consumismo; apontam que a inovação tecnológica tem limites, riscos e é conduzida para obedecer à lógica do capitalismo; redefinem o bem-estar social e a noção de prosperidade, não a resumindo à satisfação pelo consumo e à agregação de satisfações individuais; recentram o interesse coletivo e a equidade no âmago da economia e dão relevo aos bens comuns e públicos; defendem o pleno emprego e mais tempo livre para viver; e por aí fora.

O problema é que estes defensores fazem a crítica do sistema, apresentam visões do que pode ser uma outra economia e sociedade (nunca a intitulam como fora do capitalismo, mas também não dizem que não o é), mas não há nada no meio disso. Não há qualquer processo de transformação social para a superação do capitalismo nem agentes sociais de mudança. E, por isso, muitas das suas propostas políticas, aplicadas na economia de hoje, são austeritárias. Por exemplo, defender a redução do salário (para restringir o consumo) sem mudar as relações de produção, mesmo que conjugada com a proposta do Estado garantir o acesso a serviços públicos e bens essenciais, é errado como proposta,. Nem mobiliza quem deve mobilizar, a parte mais frágil do sistema.

Entre a promessa tecnológica e a austeridade verde, planeada ou de mercado, há mais saídas.
O ecosocialismo é uma delas. Como o nome indica, faz a crítica à lógica inerente do capitalismo como motor da destruição ambiental, propõe o socialismo de base ecológica como alternativa (em que a economia é orientada pelas necessidades sociais e o respeito pelos equilíbrios ecológicos e, portanto, é não produtivista, não consumista, não austeritária e é assente na planificação e participação democrática) e tem um programa de transição para a atualidade que denuncia as contradições do capitalismo, apresenta alternativas para o imediato, trava lutas para proteger as pessoas, a qualidade ambiental e a democracia contra os interesses do capital, mobiliza e junta forças sociais.

Tendo o seu eixo na luta anti-capitalista, interliga as crises financeira, económica, social e ecológica dentro de um mesmo quadro de leitura da realidade e, por isso, nas suas propostas interliga todas as propostas de saída de cada uma de crises que, com coerência entre si, disputam a relação de forças entre as pessoas e o capital e se batem por alternativas de economia e sociedade. Deste modo, o ecosocialismo é também uma via para a saída da crise económica, cujas propostas não podem limitar-se a fazer a apologia da recuperação capitalista. Trata-se que combater o ataque aos salários, ao emprego, aos direitos, à redistribuição de rendimentos com alternativas anti-capitalistas.

Mas nesta Conferência, mais do que a estrita defesa de uma ideologia capitalista, trata-se de responder às ânsias atuais do capital que vê na destruição ambiental e na progressiva escassez de recursos imprescindíveis às nossas vidas novas oportunidades de negócio com rentabilidades elevadas. E com a erosão dos sectores "clássicos" de investimento financeiro, de que a crise é um reflexo, vira-se para a mercadorização do ambiente, o que passa por definir direitos de propriedade, restringir o seu acesso e colocar-lhe um valor de troca.

Nos dias que antecedem a Conferência terá lugar a Cúpula dos Povos onde se vão juntar as vozes de todas as forças sociais que lutam por visões e propostas alternativas aos interesses do capital que destroem o Planeta e a vida das pessoas. Também por aqui e nas questões ecológicas passa a luta contra o austeritarismo do capital e dos poderes institucionalizados que os representam.
Dirigente do Bloco de Esquerda, engenheira agrónoma.

Keen versus Krugman: capitalismo, instabilidade e crise

O debate entre Steve Keen e Paul Krugman serve para atrair a atenção sobre um fato fundamental que permanece escondido (em parte pela estupidez e cumplicidade de boa parte da comunidade acadêmica): a criação monetária não é poder privativo do banco central, mas está nas mãos dos banqueiros. A eles convém o endividamento crescente (seus lucros aumentam paralelamente). O artigo é de Alejandro Nadal.

A blogosfera está repleta de referências ao debate entre Steve Keen e Paul Krugman. É um duelo apaixonante sobre o funcionamento de uma economia capitalista, a instabilidade e a crise. O primeiro pensa que, para analisar uma economia capitalista, é necessário um modelo macroeconômico que inclua os bancos e o processo de criação monetária. O segundo considera que isso é desnecessário. Qualquer um que siga de perto a polêmica mudará sua forma de pensar as relações econômicas mais fundamentais da nossa sociedade.

Keen é professor de economia da Universidade de Sydney e autor de um dos livros mais populares de crítica à teoria econômica. Krugman está na Universidade de Princeton e recebeu o Nobel de Economia. O debate tem profundas implicações para a teoria e a política econômica e é essencial, para compreender o papel do setor financeiro e a natureza da crise global. Também revela com clareza as limitações da teoria econômica convencional que os tecnocratas e ideólogos do neoliberalismo aprenderam.

A discussão começa com um ensaio de Steve Keen (disponível em ineteconomics.org) sobre a instabilidade do sistema financeiro. Um dos pontos destacáveis dessa análise é que os bancos privados podem fazer crescer a oferta monetária em resposta à demanda de fundos por parte de consumidores, empresários ou especuladores. Desta perspectiva, o investimento não é financiado por poupança, mas pela outorga de crédito pelos bancos. A oferta monetária não se decide fora do sistema econômico (por exemplo, pelo banco central), mas responde à demanda endógena de atores como empresas, consumidores ou especuladores.

Esta perspectiva já se encontra na obra de Joseph Schumpeter, um dos economistas mais importantes do século XX e mestre de Minsky. Este autor se pergunta: de onde provem os recursos para que um empresário possa instalar nova capacidade produtiva? A resposta convencional é que provem da poupança, mas Schumpeter acha que isso é insuficiente e que existe outro método que consiste na criação de poder de compra pelos bancos. Ou seja, não se trata de transferir um poder de compra previamente existente, mas de criar novo poder de compra do nada.

O dito anteriormente pode surpreender à primeira vista. Os economistas neoclássicos (Krugman não é exceção) estão convencidos de que, em uma economia capitalista, primeiro há agentes que poupam e depositam sua poupança nos bancos. Ato seguido, os bancos realizam seu trabalho de intermediação e emprestam esses recursos. Esta é a teoria dos fundos de empréstimo: em uma economia, sempre há agentes que poupam e agentes que demandam dessa poupança para investir ou consumir. Os bancos funcionam como intermediários e botam estes agentes em acordo. A taxa de juro é o preço que compatibiliza a oferta e demanda de crédito. Muita gente acredita que o mundo funciona desta maneira. Equivocam-se!

Seguindo Minsky-Schumpeter, Keen afirma que o investimento é financiado, não através de uma poupança previamente existente, mas pela expansão da oferta monetária associada à outorga de créditos a empresas, expansão que é acompanhada do aumento de endividamento. Assim, a demanda agregada, em uma economia capitalista-monetária, cresce porque existe uma forma de financiamento do gasto agregado e porque alguns agentes ou setores podem financiar seu gasto através da emissão de dívida. Esta é a teoria monetária endógena. O trabalho de Keen estaria incompleto se não tivesse uma sólida base empírica para confirmar sua perspectiva analítica.

Krugman responde (Krugman.blogs.nytimes.com) que pouco importa o que disse ou quis dizer Minsky: estamos fazendo teoria econômica, não estudos místicos. Segundo ele, quando um agente poupa e empresta sua poupança (pela intermediação de um banco), a demanda agregada permanece inalterada. A redução na demanda (devido à poupança) se compensa com o aumento da demanda derivada do emprego dos recursos emprestados. Por isso o endividamento não é importante no modelo de Krugman. Há que agregar que, em seu modelo, os mercados convergem ao equilíbrio sempre e quando não exista rigidez no ajuste de preços e fricção no ajuste de quantidade.

Steve Keen pôs Krugman em seu lugar e botou a visão neoclássica no lixo. Também assentou as bases para uma nova interpretação da crise e para repensar as respostas de política macroeconômica para enfrentá-la. Tudo isto serve para atrair a atenção sobre um fato fundamental que permanece escondido (em parte pela estupidez e cumplicidade de boa parte da comunidade acadêmica): a criação monetária não é poder privativo do banco central, mas está nas mãos dos banqueiros. A eles convém o endividamento crescente (seus lucros aumentam paralelamente). Conclusão: urge recuperar o controle social da criação monetária.

http://nadal.com.mx/

Tradução: Libório Júnior

Governo obriga replantio de mata nativa em áreas de preservação
Agência Brasil
José Cruz/ABr/JC http://www.jcrs.uol.com.br/ 
Ministros anunciaram veto em 12 itens e 32 modificações no texto do Código. 
Ministros anunciaram veto em 12 itens e 32 modificações no texto do Código.
 
Uma das principais intervenções feitas pela presidente Dilma Rousseff no novo Código Florestal Brasileiro foi a ampliação da faixa que deverá ser reflorestada nas margens de rios em áreas de Preservação Permanente (APPs). Os produtores rurais terão que recompor entre 5 e 100 metros de vegetação nativa das APPs nas margens dos rios, dependendo do tamanho da propriedade e da largura dos rios que cortam os imóveis rurais.

As novas regras vão substituir o artigo 61 do código aprovado pela Câmara dos Deputados no fim de abril. O texto só exigia a recuperação da vegetação de APPs ao longo de rios com, no máximo, 10 metros de largura. Não previa nenhuma obrigatoriedade de recuperação dessas áreas nas margens dos rios mais largos.

"Fizemos [a mudança] considerando o tamanho da propriedade, a largura de rio, o impacto da regularização no tamanho da propriedade; consideramos os fatores social e ambiental", disse a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, ao explicar a alteração.

Para imóveis rurais com até um módulo fiscal (unidade de área que varia de 5 a 110 hectares, acordo com a região do país), o proprietário terá que recompor na APP uma faixa de 5 metros largura a partir da calha do rio, independentemente do tamanho do curso d'água. Se houver outras APPs na propriedade, a área preservada não poderá ultrapassar 10% da área total do imóvel.

Nas propriedades entre 1 e 2 módulos fiscais, a faixa a ser reflorestada deverá ter 8 metros, qualquer que seja a largura do rio. Nos imóveis rurais entre 2 e 4 módulos fiscais, os proprietários terão que recuperar 15 metros. No caso de imóveis entre 4 e 10 módulos rurais, a largura da recomposição da mata nativa será 20 metros nas APPs ao longo de rios de até 10 metros de largura, e 30 metros a 100 metros nas margens de rios mais largos.

Os grandes proprietários de terras, com imóveis com mais de 10 módulos fiscais, serão obrigados a recompor, no mínimo, faixas de 30 metros de largura nas APPs ao longo de pequenos cursos d'água (com 10 metros de largura) e entre 30 metros e 100 metros nas margens de rios maiores, com mais de 10 metros de largura.

A criação de escalas de recomposição, segundo o governo, vai garantir a maior preservação das margens de rios e beneficiar os pequenos agricultores. Segundo o ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe Vargas, os principais beneficiados serão os agricultores familiares. "Quem tem menos área de terra vai recompor menos e quem tem mais vai recompor mais APP. Estamos aqui estabelecendo um principio de justiça, estamos preservando aqueles que produzem alimentos saudáveis, estamos preservando o meio ambiente".

25 de maio de 2012

1964: Golpe Militar a serviço do Golpe de Classe
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital



Neste sentido, vítimas não foram apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar.

Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a constituição. Configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo estado de terror.

Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979.

O que os militares cometeram foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de uma guerra civil, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem democrática. Esta alegação não se sustenta.

O comunismo nunca representou entre nós uma ameaça real. Na histeria do tempo da guerra-fria, todos os que queriam reformas na perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos –as grandes maiorias operárias e camponesas– eram logo acusados de comunistas e de marxistas, mesmo que fossem bispos como o insuspeito Dom Helder Câmara. Contra eles não cabia apenas a vigilância, mas para muitos a perseguição, a prisão, o interrogatório aviltante, o pau-de-arara feroz, os afogamentos desesperadores. Os alegados "suicídios” camuflavam apenas o puro e simples assassinato. Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.

O grande perigo para o Brasil sempre foi o capitalismo selvagem. Usando palavras de Capistrano de Abreu, nosso historiador mulato, "capou e recapou, sangrou e ressangrou” as grandes maiorias de nosso povo.

O Estado ditatorial militar, por mais obras que tenha realizado, fez regredir política e culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas inteligências e nossos artistas mais brilhantes. Afogou lideranças políticas e ensejou o surgimento de súcubos que, oportunistas e destituídos de ética e de brasilidade, se venderam ao poder ditatorial em troca benesses que vão de estações de rádio a canais de televisão.

Os que deram o golpe de Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.

Os militares já fora do poder garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome deste status, resistem e fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção que, na verdade é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha internacional deles.

Os militares que deram o golpe se imaginam que foram eles os principais protagonistas desta façanha nada gloriosa. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles.

René Armand Dreifuss escreveu em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.

A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava ideias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor "eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”(p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva que já em "em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder” (p.186).

A conspiração, pois estava em marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor do Presidente João Goulart, tido como o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.
Conclui Dreifuss: "O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado” (p. 397). Especificamente afirma: "A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos” (p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.

Os militares inteligentes e nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil; mas, sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.

A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados; mas, da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus propósitos corporativos de acumulação. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e desaparecidos e de muito padecimento coletivo.

[Leonardo Boff é teólogo, filósofo, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra e escritor].
O objeto da Comissão da Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.