23 de fevereiro de 2013

BENTO XVI - UMA RENÚNCIA ESTRATÉGICA


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Ao ver o barco da Igreja Católica Romana quase à deriva, principalmente nos campos da ética pública e da ética privada, Joseph Ratzinger preferiu optar por viver semi-isolado a sua condição de octogenário. A análise é de Dermi Azevedo

Dermi Azevedo*

A renúncia inesperada do Papa Bento XVI, em pleno Carnaval, assume, cada vez mais, as características de uma retirada estratégica. Ao ver o barco da Igreja Católica Romana quase à deriva, principalmente nos campos da ética pública e da ética privada, Joseph Ratzinger preferiu optar por viver semi-isolado a sua condição de octogenário.

Não é de agora a intenção de Ratzinger, afirmam fontes vaticanas. Um dos seus maiores amigos, o ex-arcebispo de São Paulo, cardeal Cláudio Hummes, preparou, a pedido do Papa, há cinco anos, um relatório secreto sobre a situação geral da Igreja e suas perspectivas. O documento foi lido na abertura do Sínodo Mundial dos Bispos, no Vaticano e continua mantido sob rigoroso sigilo.

Com base em ampla documentação, o relatório Hummes aponta graves desafios para a atuação do Catolicismo. O principal deles é o avanço do indiferentismo religioso; o segundo é a migração, diante de expectativas não respondidas pela Igreja, de legiões cada vez mais numerosas de católicos para outras confissões cristãs, de matriz pentecostal, em sua maioria, e para outras religiões, como é o caso do Islamismo; o terceiro desafio refere-se à atuação pouco eficaz dos bispos que integram a cúpula eclesiástica para coibir a prática da pedofilia por parte de clérigos; o quarto diz respeito à situação do clero quanto às questões do celibato obrigatório, da impossibilidade da admissão de mulheres ao sacerdócio e das restrições que o Vaticano faz ao controle da natalidade.

No seu relatório, Hummes chama a atenção da cúpula eclesiástica para o avanço de uma espécie de "sentimento de vazio" na sociedade global, caracterizado por uma nouvelle vague decorrente da hegemonia capitalista e da crise das utopias, no pós-queda do Muro de Berlim.

Detalhando um pouco mais esse panorama, os argumentos do cardeal Hummes são reforçados por dados da realidade: na França, o Islamismo já se tornou a religião hegemônica; enquanto velhos templos católicos se deterioram ou são alugados para famílias sem casa de baixa renda (ou são transformados em museus). A República laicista francesa é obrigada a lidar não mais com a disputa de poder com os bispos, mas com questões que (se tivessem acontecido naquela época) deixariam perplexo o rei Luís, como é o caso do uso de burkas pelas mulheres islâmicas, da permissão para a construção de mesquitas e na adoção das normas do Alcorão sobre a família, entre outras.

A preocupação do papa Ratzinger quanto ao pentecostalismo refere-se ao crescimento de um novo modelo de Igreja que adota a chamada "teologia da prosperidade" como referencial teológico e pastoral. Esse modelo baseia-se em um "toma lá dá cá" entre os seus adeptos e Deus, tendo como objetivo o enriquecimento pessoal dos crentes e a cura das doenças, numa perspectiva que desconhece os fatores sócio-econômicos entre as causas da persistência e do avanço dos males sociais (como o desemprego, a violência, as drogas entre outros).

Trunfo jogado fora

A renúncia do Papa coloca em xeque a principal vitória das correntes conservadoras do Catolicismo nos séculos XX e XXI: o enquadramento da Teologia da Libertação quando Ratzinger entrou no consistório para disputar a eleição pontifícia, já contava com pelo menos 50 votos de cardeais contrários à Teologia da Libertação. Essa leitura teológica ainda representa a primeira interpretação não européia da Teologia tradicional com base na realidade dos oprimidos do Terceiro Mundo. Foi trazida, paradoxalmente, da Europa pelo peruano Gustavo Gutierrez e por toda uma legião de bispos e teólogos, com base na Teologia Crítica alemã e nos documentos do Concílio Vaticano II.

Um dos adeptos mais destacados dessa corrente foi o colombiano padre Camilo Torres, que ingressou na guerrilha do ELN (Exército de Libertação Nacional), depois de voltar a seu país, como sociólogo, com doutorado na Universidade de Louvain, na Bélgica. Durante pelo menos 30 anos a Teologia da Libertação alimentou a esperança de milhões de cristãos, que vislumbravam, após mais de 500 anos de colonialismo e de esmagamento dos pobres.

Eleito Papa, Bento XVI tratou de concretizar em nível global a ofensiva conservadora. Seu laboratório anterior havia sido a Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Santa Inquisição) onde havia comandado os processos de expurgo de teólogos como Leonardo Boff e Jon Sobrino. De um momento para outro, a Igreja deixou de ser uma das principais referências para a produção de sentido na sociedade. Entrou em descompasso, mesmo que fosse para polemizar, com a pós-modernidade. Retomou antigos costumes que lhe foram úteis na época da Cristandade, mas que se revelaram incompatíveis com a dinâmica de um mundo em rápida mutação de valores e em plena revolução tecnológica. A linha política adotada pelo Papa afastou da cúpula da Igreja os seus quadros progressistas e a distanciou das massas empobrecidas no mundo.

Corrupção

Por outra parte, Bento XVI tentou impedir, mas não conseguiu, a crescente corrupção nas instituições financeiras do Vaticano. O próprio Instituto de Obras da Religião (como é chamado o Banco Central da Santa Sé) foi apontado publicamente como um paraíso da lavagem de dinheiro oriundo de fontes desconhecidas ou escusas. O papa teve que intervir várias vezes nos órgãos financeiros do Vaticano diante de denúncias de corrupção apresentadas pelos jornais e pelas autoridades italianas. Paralelamente, Bento XVI teve que pagar a conta política dos prejuízos causados à Igreja por causa de indenizações determinadas pela justiça nos casos de pedofilia envolvendo clérigos. A Arquidiocese de Boston, nos EUA, é recordista nesse tipo de despesa.

E o futuro?

O Vaticano e o Papa dispõem de todas as informações sobre a crise que levou Bento XVI à renuncia. A eleição do novo Papa, em março próximo, revelará se a Igreja está mesmo disposta a enfrentar a sua maior crise em dois séculos (XX e XXI) ou se continuará voltada para o seu próprio umbigo.

*Dermi Azevedo é jornalista e cientista político

20 de fevereiro de 2013

O FIM DA MISÉRIA É SÓ UM COMEÇO


Brasil Sem Miséria retira 22 milhões da pobreza extrema

A presidenta Dilma Rousseff anunciou nesta terça-feira (19) a extensão da complementação de renda do Bolsa Família para alcançar os últimos 2,5 milhões de beneficiários do programa que ainda permaneciam em situação de extrema pobreza. Com essa medida, o governo federal alcança a retirada de 22 milhões de brasileiros da extrema pobreza nos últimos dois anos.

Brasília – A presidenta Dilma Rousseff anunciou nesta terça-feira (19) a extensão da complementação de renda do Bolsa Família para alcançar os últimos 2,5 milhões de beneficiários do programa que ainda permaneciam em situação de extrema pobreza. Com essa medida, o governo federal alcança a retirada de 22 milhões de brasileiros da extrema pobreza nos últimos dois anos.

Com a ampliação do Programa Brasil sem Miséria, cerca de 2,5 milhões de pessoas cadastradas no Bolsa Família vão receber complemento para ultrapassar a renda de R$ 70 por pessoa, considerado o patamar que supera a linha da extrema pobreza. A partir de março, quando passarão a receber o benefício, nenhuma família cadastrada estará abaixo dessa linha. A complementação de renda para esses 2,5 milhões de beneficiários do Bolsa Família terá investimento de R$ 773 milhões em 2013.

Segundo a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, o benefício complementar é um primeiro passo para a superação da miséria. “É só um começo, não vamos nos limitar à miséria monetária. Está em curso a verdadeira reforma: colocar o Estado a serviço de quem mais precisa”, destacou Tereza Campello.

A presidenta Dilma Rousseff destacou que "o marco que comemoramos hoje não seu deu por mágica, mas por 10 anos de muito trabalho. Nesse período, construímos a tecnologia social mais avançada do mundo, o Cadastro Único e o Bolsa Família".

Aliado à garantia de renda, o plano também promove ações de inclusão produtiva – como qualificação profissional, assistência técnica e extensão rural e fomento à produção – e de acesso a bens e serviços públicos, em especial nas áreas de saúde, educação, habitação, acesso à água e à energia elétrica.

Apesar de eliminar a pobreza extrema das famílias cadastradas, o MDS estima que aproximadamente 700 mil famílias estejam nessa condição e precisem ser localizadas. Dilma reforçou, nos discursos que fez este ano, a importância da colaboração dos prefeitos para encontrar essas famílias e cadastrá-las no Bolsa Família para que também deixem a situação de miséria até 2014.

Por meio do Cadastro Único, o poder público conhece quem são os brasileiros mais pobres, onde vivem, quais as características de seus domicílios, sua idade, escolaridade etc. Assim, pode incluir essas famílias em programas de transferência de renda e também matricular seus integrantes em cursos profissionalizantes, oferecer-lhes serviços de assistência técnica e extensão rural, dar-lhes acesso a água ou a tarifas reduzidas de energia elétrica, por exemplo. A Tarifa Social de Energia Elétrica, o Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Verde são alguns exemplos de ações que utilizam o Cadastro Único como referência para a seleção de beneficiários.

Em 2011 havia 36 milhões de pessoas no Cadastro Único que estariam na miséria caso sobrevivessem apenas com sua renda familiar. Graças ao Bolsa Família, 14 milhões escapavam dessa condição. Mas ainda restavam 22 milhões de brasileiros que, mesmo recebendo os benefícios do programa, continuavam na extrema pobreza. Medidas tomadas no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria diminuíram esse total para 19 milhões.

Em 2012, com o Brasil Carinhoso, mais 16,4 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza. Permaneceram os 2,5 milhões de pessoas que agora superam a miséria, 40% delas na faixa dos 16 aos 25 anos. Assim, totalizamos 22 milhões de beneficiários do Bolsa Família que saíram da extrema pobreza desde o começo do Brasil Sem Miséria.

(*) Com informações do MDS e da Agência Brasil

19 de fevereiro de 2013

O CONSERVADORISMO LOCAL E FORÂNEO QUER LULA E O PT LONGE DE BRASÍLIA

18/02/2013

PT: A idade da razão

Saul Leblon - blog das frases
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Quando a luta contra o arrocho salarial mesclou-se à saturação nacional contra a ditadura,nos anos 70, os metalúrgicos souberam ir além dos limites corporativos.

Assumiram a liderança de uma nova agenda histórica.

Desse impulso divisor nasceria o PT, há 33 anos.

A série de 13 debates que o Partido inicia nesta 4ª feira, a partir de São Paulo, com a presença de Lula e Dilma, para em seguida inaugurar um circuito nacional, pretende consolidar o inventário desse período, 1/3 do qual no comando do país.

A rememoração é necessária.

Ela ocorrerá previsivelmente sob outros pontos de vista.

O colunismo bicudo, as manchetes especializadas nas adversativas, cuidarão de transformar o aniversário em necrológio.

O PT tem razões para acionar contrafogos. Mas seria crucial que não ficasse apenas nisso.

Seria precioso que surpreendesse indo além da reflexão de legítima defesa.

Os avanços em si são tão conhecidos quanto a contrapartida da desqualificação que os acompanha. À direita, disparada por um conservadorismo que os nega.

À esquerda , por visões --muitas delas legítimas-- determinadas a instigar o debate progressista, sublinhando a insuficiência do patamar atingido.

O conjunto mais reafirma do que dissipa o essencial.

Os deslocamentos sócio-econômicos e geopolíticos acumulados na década de governo do PT, assim como os erros e hesitações que possam ser computados ao partido, compõem um novo e largo mirante da história brasileira.

O futuro que hoje se coloca na mesa do presente carrega intrínsecas condicionalidades progressistas.

Elas não existiriam tivesse o Brasil dos últimos dez anos sido governado pela coagulação conservadora que agora tenta desqualificar Lula, Dilma e respectivos governos.

Um dado resume todos os demais: sendo ainda uma das sociedades mais iníquas do planeta (apenas sete nações ostentam pior distribuição de renda) o Brasil é hoje o país menos desigual de toda a sua história.

Não é necessário endossar o trajeto de um resgate social inconcluso para reconhecer o degrau alcançado.

O ressentimento conservador, em permanente flerte com a oportunidade de uma elipse institucional, confirma o adágio de Lênin: 'política é economia concentrada'.

A agenda política da direita regurgita diuturnamente a intolerância de classe a um governo que não pode ser chamado integralmente de seu.

Ainda que seu sejam muitos dos cargos, recursos, políticas e limites espetados na relação de forças que compõe o coração de qualquer governo de coalizão.

O conservadorismo local e forâneo quer Lula e o PT longe de Brasília.

Não apenas pela bagagem dos avanços sociais e econômicos que faíscam na festa de aniversário do partido.

Mas pelo risco de que o 'inconcluso e insuficiente' possa gerar massa crítica de um novo salto, de repercusão histórica semelhante ao original. Agora em escala ampliada.

O medo de classe ajuda a entender a permannte conspiração de uma plutocracia que se lambuzou em caldas doces no ciclo recente e até há pouco.

Banhou-se confortavelmente nos últimos anos no cofre forte rentista onde a sociedade depositou o equivalente a 5% do PIB ao ano, referente aos juros da dívida pública.

O dízimo da governabilidade, diziam os mais condescendentes com a sangria asfixiante, foi reduzido de forma substancial em 2012.

A perspectiva de injeções declinantes nesse tanque do Tio Patinhas, mesmo associada a opções de investimentos (em infraestrutura) até mais rentáveis que a taxa de juro real, inquieta os detentores do dinheiro grosso.

Da ganância rentista com seu imenso aparato vocalizador partem os principais disparos que ameaçam o passo seguinte do ciclo histórico que agora fecha um balanço de 33 anos, 1/3 deles no governo da nação.

Um número para resumir o calibre do impasse.

O Brasil precisa investir algo como R$ 130 bi por ano. É o requisito para continuar gerando emprego, renda e receita capaz de ampliar e qualificar a rede pública de educação, a de saúde, transportes, pesquisas etc

O dinheiro existe.

Até hoje engordou ocioso no pasto financeiro da dívida pública. Pronto para o abate líquido quando for esse o interesses de seus detentores. Sem ônus, nem risco.

O pasto raleou substancialmente com as podas feitas por Dilma na Selic, em 2012.

Mas a obsessão mórbida pela liquidez não serenou a qualidade e o tamanho de apetite.

Ao contrário.

O ventre gordo tem sido instigado a apostar no fracasso das restrições impostas ao capital a juros.

O tambor sombrio não cessa de emitir vaticínios e alertas.

Vai ter apagão; a inflação descambou; o PAC travou; a Petrobrás quebrou; Gurgel vai 'pegar' Lula; Eduardo e Aécio vem aí --e, claro, a Marina também.

Não importam os fatos.

A intenção é sinalizar a chance de uma volta redentora dos professores banqueiros ao poder, em 2014.

E estes não se fazem de rogados.

Diretamente, ou por intermédio de porta-vozes credenciados no jornalismo econômico, confirmam as intenções futuras, ao clamar pela alta dos juros já no presente.

Apascentam assim, as incertezas rentistas com o feno amargo das expectativas voláteis.

Quem toparia colocar capital em projetos de longa maturação com uma neblina dessa espessura?

Private banks, contas especiais que administram grandes fortunas no país, tem sob seu piquete uns R$ 500 bilhões.

Dinheiro coagulados pela guerra política que condiciona a engrenagem econômica.

Dinheiro ruminando indecisão.

Quase cinco anos do investimento pesado que o Brasil precisa fazer para avançar na caminhada da última década está aí.

A pergunta é: os 33 anos rememorados a partir desta 4ª feira guardam algo do impulso original capaz de romper o novo ardil conservador, menos ostensivo, porém, mais complexo que aquele dos anos 70/80?

A distintção se estende à relação de forças.

Hoje,em certa medida, até mais favoráveis que a dos anos 70/80.

A supremacia neoliberal esfarelou-se. A oposição está atada a ese colapso como carne e osso. Existe maior abrangência e capilaridade progressista; o Estado, bem ou mal, tem recorte democrático.

Acima de tudo: os ingredientes e a escala modificaram-se.

Para melhor.

Entraram no jogo 50 milhões de brasileiros que ascenderam socialmente através das políticas públicas implantadas desde 2003.

Exceto em breves intervalos de disputa eleitoral, essa paleta de forças e interesses quase nunca se mobilizou de forma coordenada e contundente.

Em certa medida, é como se o PT desconhecesse o real alcance do protagonista político mais importante que ajudou a revelar.

A omissão argui a responsabilidade histórica do partido que atinge a idade da razão.

É viável enfrentar as contradições e conflitos de um ciclo de desenvolvimento como o do Brasil atual, sem estreitar os canais de organização e comunicação com a principal força capaz de sustentar a continuidade e a coerência do processo?

A ver.

18 de fevereiro de 2013

ESCÂNDALOS, PERDA DE FIÉIS E DE DINHEIRO AMEAÇAM O VATICANO


A investigação por lavagem de dinheiro envolvendo o Banco do Vaticano, as revelações feitas pelo mordomo Paolo Gabriele, os escândalos de pedofilia e o número decrescente de fiéis e doações são alguns dos problemas mais graves de uma igreja que, segundo uma investigação da revista inglesa 'The Economist', gastou em 2010 cerca de 171 bilhões de dólares. A reportagem é de Marcelo Justo, de Londres.

Londres - O Papa Bento XVI abandona o navio em meio a sérios problemas financeiros e com a credibilidade da igreja no chão. A investigação por lavagem de dinheiro envolvendo o Banco do Vaticano, as revelações feitas pelo mordomo Paolo Gabriele, os escândalos de pedofilia e o número decrescente de fiéis e doações são alguns dos problemas mais graves de uma igreja que, segundo uma investigação da revista inglesa The Economist, gastou em 2010 cerca de 171 bilhões de dólares.

No momento em que o catolicismo está perdendo terreno em todo o mundo (tem menos seguidores que o islamismo), o legado ideológico do Papa Joseph Ratzinger é uma pedra a mais no caminho. O Papa atacou sistematicamente a teologia da libertação e afastou todos os prelados que mantinham algum vínculo com sua doutrina, dinamitando uma ponte com os pobres que foi novamente capitalizada pelas igrejas evangélicas, de presença crescente na América Latina.

A cada vez que teve que escolher, o Papa não teve dúvidas. No caso dos quatro bispos ordenados pelo dissidente e fundamentalistas Marcel Lefebvre – o bispo que resistiu nos anos 60 a deixar de celebrar a missa em latim e desafio a prédica modernizadora e progressista de Paulo VI – Bento XVI decidiu em julho de 2009 revogar sua excomunhão. “Com essa decisão tento eliminar o impedimento que poderia colocar em perigo a abertura de um diálogo para convidar os bispos da “Sociedade de São Pio X” a redescobrir o caminho da plena comunhão com a igreja”. A Sociedade de São Pio, fundada por Lefebvre, apoiou os regimes fascistas de Francisco Franco na Espanha e de Salazar em Portugal, assim como mais tarde fez com Augusto Pinochet no Chile e Jorge Rafael Videla na Argentina. Na França, o político favorito da Sociedade é o ultradireitista Jean Marie Le Pen.

Bento XVI deixa seus delfins em postos chave. A continuidade conservadora estaria garantida a não ser pelo precário estado da igreja em nível mundial, terreno fértil para as rebeliões internas. As finanças são um dos calcanhares de Aquiles de um projeto continuísta. As suspeitas de lavagem de dinheiro respingam há muito tempo no Instituto para as Obras de Religião (IOR), o Banco do Vaticano. Em 2010, o Banco Central da Itália confiscou 30 milhões de dólares do IOR e a polícia iniciou uma investigação de seu diretor Ettore Gotti Tedeschi. A soma pertencia a uma transferência para o JP Morgan Chase e para outro banco italiano, o Banco de Fucino. Violando a lei, a origem do dinheiro não estava declarada.

O comunicado do Vaticano expressou “perplexidade e assombro” ante a investigação, mas pouco depois criou a Autoridade de Informação Financeira, uma agência independente para supervisionar todas as atividades monetárias e comerciais do Vaticano, incluindo o próprio IOR. No ano passado, a efetividade da Autoridade foi posta em dúvida. O escândalo do mordomo do Papa, Paolo Gabrieli, batizado pela imprensa como Vatileaks, terminou com um julgamento que trouxe novamente à luz do dia a roupa suja do Vaticano. Gabrieli, condenado a 18 meses de prisão, justificou o roubo e a entrega do material a um jornalista, Gianluigi Nuzzi, porque “queria recolocar a igreja no caminho correto”. O Vatileaks deixou claro uma coisa. O organismo supervisor não era mais do que um modesto tapa-buracos da igreja: as contas do Vaticano não estavam em ordem.

Um informe de Moneyval, um grupo que combate a lavagem de dinheiro na Europa, assinalou que em 7 das 16 áreas consideradas essenciais para a transparência do Vaticano, seguiam aparecendo problemas. Ettore Gotti Tedeschi, que era diretor do IOR quando se iniciou a investigação judicial, perdeu seu posto por “não cumprir com as funções primárias de seu trabalho” e está sendo investigado por lavagem de dinheiro. Tedeschi decidiu colaborar com a investigação e tem em seu poder um arquivo de correspondência comprometedora a respeito do manejo das finanças papais.

O fantasma do Banco Ambrosiano está no ar. A misteriosa morte, em 1978, de João Paulo I, o papa que reinou 33 dias, foi vinculada à uma investigação do Banco Ambrosiano, cujo acionista mais importante era o Vaticano. O Ambrosiano estava envolvido em operações financeiras ilegais da Máfia e da Loja Fascista P-2 que terminaram com o descalabro multimilionário da entidade. No melhor estilo da máfia, o presidente do banco, Roberto Calvi, apareceu enforcado debaixo da ponte de Blackfriars, em Londres, em 1982.

Financiando o aparato
O tema das finanças é chave para o funcionamento da igreja em nível mundial. Segundo um informe da The Economist, publicado no ano passado, os gastos do Vaticano de 2010 superavam os 170 bilhões de dólares. Uma fonte essencial do financiamento da igreja vem das doações dos fiéis, mas a queda em nível mundial do número de católicos praticantes está colocando essa fonte em perigo. Uma investigação da revista The Week, nos Estados Unidos, mostra que desde a década de 60 para cada quatro pessoas que deixam a igreja apenas uma se soma a ela. Na Irlanda, país ultracatólico por excelência, só 50% das pessoas seguem assistindo a missa, um número bastante inferior aos 84% do início dos anos 90.

Os escândalos sexuais aumentam ainda mais a erosão do prestígio da igreja e, ao mesmo tempo, são uma fonte constante de perda de divisas. Somente três países – Brasil, México e Filipinas – têm uma comunidade católica numericamente superior a dos Estados Unidos, que conta com cerca de 100 milhões de integrantes. Desde que iniciaram os escândalos sexuais nos anos 80, a igreja estadunidense desembolsou cerca de 3 bilhões de dólares em indenizações. A onda de escândalos se estendeu a Irlanda, Canadá, Austrália, Bélgica, Reino Unido, Holanda, Noruega e vários países latino-americanos, entre eles o Brasil (denúncias da Conexão Repórter), Chile e Argentina (o sacerdote Julio César Grassi foi condenado a 15 anos de prisão).

A Alemanha é um caso peculiar. Vários dos mais de 300 casos de abusos sexuais, que emergiram desde o início de 2010, estavam ligados ao Coro de Meninos do Colégio “Regensbug Domspatzen” que, durante mais de 30 anos, foi dirigido pelo irmão do papa, Monsenhor Georg Ratzinger.

Tradução: Katarina Peixoto


Fotos: http://www.news.va/pt

A LUTA PELA ALMA DA SOCIEDADE

17/02/2013
Saul Leblon - blog das frases


 
 
A atividade política mesmo agindo no imaginário não dá conta de preencher o amplo universo da alma humana.

O aparato da religião ilustra o peso ordenador das demais instancias simbólicas na vida da sociedade.

Disputas de falanges no interior dessas corporações, como as que cercaram a renúncia de Bento XVI, não miram apenas a redivisão interna do poder.

Nem esgotam suas repercussões nos limites formais da fé.

O que se disputa hoje na Santa Sé extrapola os 44 hectares da Cidade do Vaticano.

O canibalismo em torno do 'Banco de Deus' ilumina um dos pontos de intersecção da fronteira divina com o inferno material.

Está longe de ser o único.

Prelazias como a Opus Dei mostram desembaraço em outras sinergias também.

Sua rede de instituições educacionais se especializa na formação de quadros que possam irradiar os interesses gêmeos da fé e do dinheiro na vida mundana.

A formatação de executivos encontra-se entre as prioridades.

Estima-se que 600 colégios e 17 escolas de administração e negócios estão conectados à Opus Dei em todo o mundo.

Bebem sua água benta também a Universidade de Navarra, na Espanha e a Pontificia Universidade della Santa Croce, em Roma.

Ali são formados quadros espirituais da Opus Dei para a tarefa difusora de valores nas áreas da teologia, direito canônico, filosofia, comuniação social e institucional.

As identidades entre a prelazia fundada em 1928 por Josemaría Escrivá (a imagem acima é dele) e o conservadorismo político e empresarial remetem aos laços estreitos do mestre com o franquismo.

Juntos, a cruz e a baioneta esgoelaram a voz e o espírito espanhol por 37 anos.

Mas não só.

Morto em 1975, o ideólogo persistou na faina: foi canonizado em tempo recorde para os padrões católicos.

Em 2002, diante de mais de 80 mil seguidores de todo o mundo, João Paulo II, de quem o Bento XVI foi o braço direito, anunciou a santificação:

"Em honra da muito Santa Trindade, para a exaltação da fé católica e promoção da vida cristã, com a autoridade de nosso senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo e a nossa, depois de ter reflectido longamente, invocado muitas vezes a assistência divina e ter escutado os conselhos de muitos dos nossos irmãos sacerdotes, nós declarams e definimos como santo o bem aventurado Josémaria Escrivá de Balaguer e inscrevemo-lo no álbum dos santos”, informou o Sumo Pontífice.

Não foi um ponto fora da curva destes tempos de fé e costumes estritamente vigiados por Ratzingers e Bergonzines - o bispo do panfleto contra Dilma, em 2010.

Em junho do ano passado, uma estátua em bronze do santo Escrivá foi inaugurada na Catedral da Sé, em São Paulo.

A Catedral metropolitana, cujas escadarias no passado serviram de abrigo a manifestações contra a ditadura e em cujo interior se denunciou o assassinato de Vladimir Herzog, em 1975, agora tem um altar em honra da Opus Dei.

O episódio diz muito sobre o efeito regressivo dos últimos dois papados no universo do catolicismo brasileiro.

Na missa solene, com igreja lotada, em honra a 'São Josemaria Escrivá', foi lida a mensagem elogiosa de D. Odilo Scherer.

O cardeal de São Paulo recordou a passagem de Escrivá pelo país, nos tempos bicudos de 1974. Nenhuma menção aos tempos bicudos.

Coube à maior autoridade da Opus Dei no Brasil, demarcar o significado prático da presença simbólica de 'São Josemaría' na Catedral da Sé:

“É um forte apelo a todos os católicos: a sua mensagem era exatamente a santificação das estruturas civis da sociedade', sentenciou o monsenhor que atende pelo sugestivo nome de Vicente Anaconda.

Na 'santificação' das estruturas civis da sociedade' opera a rede de formação educacional que a extrema direita católica mantém mundo afora.

O Iese Business School, vinculado à Universidade de Navarra e à Opus Dei, faz esse link catequizador com o estratégico mundo empresarial.

É considerado uma das principais escolas de administração e formação e quadros do mundo.

Forma executivos para os negócios. Mas também lideranças associadas aos valores da ' santificação das estruturas civis da sociedade'.

A cepa anticomunista da Opus, sua esférica condenação à liberdade dos costumes, sinaliza o sentido dessa formação complementar.

No Brasil, o Iese atua desde 1996 através da escola de administração ISE, uma parceria desenvolvida com o mesmo "DNA" da matriz espanhola.

Na direção figuram nomes como o do jurista Ives Gandra Martins,reconhecido e assumido por suas ligações com a Opus Dei brasileira.

O responsável pelo curso de Ética da escola, Cesar Furtado de Carvalho Bullara, é mestre e doutor em filosofia pela Pontificia Università della Santa Croce – a usina de formulação e difusão da Opus Dei.

Vai bem, obrigado o braço brasileiro.

No ano passado, segundo o insuspeito jornal Valor Econômico, São Paulo foi escolhida para ser a primeira cidade fora da Espanha a receber o programa de MBA Executivo do Iese.

Além disso, o Iese quer chegar a 500 alunos em cursos de longa duração no Brasil (hoje são 300) . E aumentar o número de profissionais que recebem aulas "in company" de 600 para mil.

A partir de 2015, o Iese pretende trazer para São Paulo três programas já testados pela Opus Dei em outros países.

Sugestivamente, um deles versará sobre alta gestão para a área de mídia e entretenimento.

Ou seja, formação de quadros para orientar e dirigir o estratégico aparato de comunicação e produção cultural, hoje monopolizado por grupos que lideram a agenda conservadora brasileira.

Os apóstolos de São Escrivá não bricam em serviço.

Diante da exaustão conservadora estampada na desordem neoliberal, intensificam a formação de quadros de qualidade. Para setores estratégicos: a esfera do dinheiro; a difusão das notícias; a cultura e o entretenimento.

Sua estratégia para os dias que rugem é intensificar a receita apregoada por Ratzinger: conquistar poucos e bons; com eles, capturar a alma da sociedade.

Só há um antídoto à ofensiva: ampliar o espaço público da liberdade cultural, da comunicação e da democracia no país.

Isso se faz com políticas de Estado, que assegurem a diversidade indispensável à criatividade do espírito e à livre formação do discernimento social.

Se não contarmos as nossas próprias histórias, quem o fará por nós?

Eles

17 de fevereiro de 2013

BENTO XVI: CRISE E EXAUSTÃO CONSERVADORA

11/02/2013
Saul Leblon -  blog das frases

 
 
Dinheiro, poder e sabotagens. Corrupção, espionagem, escândalos sexuais.

A presença ostensiva desses ingredientes de filme B no noticiário do Vaticano ganhou notável regularidade nos últimos tempos.

A frequência e a intensidade anunciavam algo nem sempre inteligível ao mundo exterior: o acirramento da disputa sucessória de Bento XVI nos bastidores da Santa Sé.

Desta vez, mais que nunca, a fumaça que anunciará o 'habemus papam' refletirá o desfecho de uma fritura política de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia católica.

Mais que as razões de saúde, existiriam razões de Estado que teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia de seu papado, nesta 2ª feira.

A verdade é que a direita formada pelos grupos 'Opus Dei' (de forte presença em fileiras do tucanato paulista; veja obs. ao final dessa nota), 'Legionários' e 'Comunhão e Libertação' (este último ligado ao berlusconismo) já havia precipitado fim do seu papado nos bastidores do Vaticano.

Sua desistência oficializa a entrega de um comando de que já não dispunha.

Devorado pelos grupos que inicialmente tentou vocalizar e controlar, Bento XVI jogou a toalha.

O gesto evidencia a exaustão histórica de uma burocracia planetária, incapaz de escrutinar democraticamente suas divergências. E cada vez mais afunilada pela disputa de poder entre cepas direitistas, cuja real distinção resume-se ao calibre das armas disponíveis na guerra de posições.

Ironicamente, Ratzinger foi a expressão brilhante e implacável dessa engrenagem comprometida.

Quadro ecumênico da teologia, inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como Hans Küng (leia seu perfil elaborado por José Luís Fiori, nesta pág.), Joseph Ratzinger escolheu o corrimão da direita para galgar os degraus do poder interno no Vaticano.

Estabeleceu-se entre o intelectual promissor e a beligerância conservadora uma endogamia de propósito específico: exterminar as ideias marxistas dentro do catolicismo.

Em meados dos anos 70/80 ele consolidaria essa comunhão emprestando seu vigor intelectual para se transformar em uma espécie de Joseph McCarty da fé.

Foi assim que exerceu o comando da temível Congregação para a Doutrina da Fé.

À frente desse sucedâneo da Santa Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da Teologia da Libertação.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos intelectuais mais prestigiados desse grupo, dentro e fora da igreja, esteve entre as suas presas.

Advertido, punido e desautorizado, seus textos foram interditados e proscritos. Por ordem direta do futuro papa.

Antes de assumir o cargo supremo da hierarquia, Ratzinger 'entregou o serviço' cobrado pelo conservadorismo.

Tornou-se mais uma peça da alavanca movida por gigantescas massas de forças que decretariam a supremacia dos livres mercados nos anos 80; a derrota do Estado do Bem Estar Social; o fim do comunismo e a ascensão dos governos neoliberais em todo o planeta.

Não bastava conquistar Estados, capturar bancos centrais, agências reguladoras e mercados financeiros.

Era necessário colonizar corações e mentes para a nova era.

Sob a inspiração de Ratzinger, seu antecessor João Paulo II liquidou a rede de dioceses progressistas no Brasil, por exemplo.

As pastorais católicas de forte presença no movimento de massas foram emasculadas em sua agenda 'profana'. A capilaridade das comunidades eclesiais de base da igreja foi tangida de volta ao catecismo convencional.

Ratzinger recebeu o Anel do Pescador em 2005, no apogeu do ciclo histórico que ajudou a implantar.

Durou pouco.

Três anos depois, em setembro de 2008, o fastígio das finanças e do conservadorismo sofreria um abalo do qual não mais se recuperou.

Avulta desde então a imensa máquina de desumanidade que o Vaticano ajudou a lubrificar neste ciclo (como já havia feito em outros também).

Fome, exclusão social, desolação juvenil não são mais ecos de um mundo distante. Formam a realidade cotidiana no quintal do Vaticano, em uma Europa conflagrada e para a qual a Igreja Católica não tem nada a dizer.

Sua tentativa de dar uma dimensão terrena ao credo conservador perdeu aderência em todos os sentidos com o agigantamento de uma crise social esmagadora.

O intelectual da ortodoxia termina seu ciclo deixando como legado um catolicismo apequenado; um imenso poder autodestrutivo embutido no canibalismo das falanges adversárias dentro da direita católica. E uma legião de almas penadas a migrar de um catolicismo etéreo para outras profissões de fé não menos conservadoras, mas legitimadas em seu pragmatismo pela eutanásia da espiritualidade social irradiada do Vaticano.


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Obs.

Simpatizantes do PSDB, como o jurista Ives Gandra, e militantes, como o jornalista Carlos Alberto di Franco,entre outros, são reconhecidos como membros da Opus Dei no Brasil. Di Franco teria sido o mentor do governador Geraldo Alckmin na organização. O falecido bispo de Guarulhos, D Luiz Bergonzini, que serviu como cabeça-de -turco de Serra na campanha de 2010, acusando Dilma de 'aborteira' em planfletos com assinatura falsa da CNBB, era igualmente vinculado à extrema direita católica. O ex- chefe da Casa Civil do governo de SP, Sidney Beraldo,agora no TCE, foi apontado então como um tucano com fortes vínculos junto a D Bergonzini; ambos eram conterrâneos de São João da Boa Vista, onde Beraldo foi prefeito e Bergonzini nasceu e atuou. A revista 'Época', pertencente às Organizações Globo, documentou em reportagem intitulada 'O governador e a Obra', o 'noviciato' do tucano Geraldo Alckmin na Opus Dei. A revista 'IstoÉ' fez um pedagógico mapeamento dos vínculos entre tucanos e os responsáveis pelo panfleto anti-aborto da extrema direita religiosa, em 2010.

Revista Época , edição nº 400; 13 de janeiro de 2006(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG72901-6014,00-O+GOVERNADOR+E+A+OBRA.html)

Revista 'ISTOÉ', edição nº 2137; 22 de outubro de 2010 partes I, II, III (http://www.istoe.com.br/reportagens/107353_OS+SANTINHOS+DE+UMA+GUERRA+SUJA+PARTE+1)
Postado por Saul Leblon às 18:29

A HISTÓRIA SECRETA DA RENÚNCIA DE BENTO XVI


Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.

Paris - Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama “uma continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um informe elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de dinheiro. O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.

Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.

O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da verdade”. Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha ideia é trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica.

A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.

Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.

Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.

Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.

João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.

Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por supostas “irregularidades” em sua gestão. Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários, construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.

Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.

Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.


Tradução: Katarina Peixoto