10 de outubro de 2012

O SONHO DO MINISTRO JOAQUIM BARBOSA


Negros que escravizam e vendem negros na África, não são meus irmãos
Negros senhores na América a serviço do capital, não são meus irmãos
Negros opressores, em qualquer parte do mundo, não são meus irmãos...
Solano Trindade


O racismo, adotado pelas oligarquias brasileiras para justificar a exclusão dos negros no período de transição do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista, foi introjetado pelos trabalhadores europeus e seus descendentes, que aqui aportaram beneficiados pelo projeto de branqueamento da população brasileira, gestado por aquelas elites. Impediu-se, assim, alianças do proletariado europeu com os históricos produtores da riqueza nacional, mantendo-os com ações e organizações paralelas, sem diálogos e estratégias de combate ao inimigo comum. Contudo, não há como negar que o conjunto de organizações sindicais, populares e partidárias, além das elaborações teóricas classificadas como “de esquerda”, sejam aliadas naturais dos homens e mulheres negros, na sua luta contra o racismo, a discriminação e a marginalização a que foram relegados.

No campo oposto do espectro ideológico e social, as organizações patronais, seus partidos políticos e as teorias que defendem a exploração do homem pelo homem, que classificamos de “direita”, se baseiam na manutenção de uma sociedade estamental e na justificativa da escravidão negra, como decorrência “natural” da relação estabelecida entre os “civilizados e culturalmente superiores europeus” e os “selvagens africanos”. É equivocada, portanto, a frase de uma brilhante e respeitada filósofa negra paulistana de que “entre direita e esquerda, eu sou preta”, uma vez que coloca no mesmo patamar os interesses de quem pretende concentrar a riqueza e poder e àqueles que sonham em distribuí-la e democratizá-la. Afirmação esta, que pressupõe alienação da população negra em relação às disputas políticas e ideológicas, como se suas demandas tivessem uma singularidade tal que estariam à margem das concepções econômicas, de organização social, políticas e culturais, que os conceitos de direita e esquerda carregam.

As elites brasileiras sempre utilizaram indivíduos ou grupos, oriundos dos segmentos oprimidos para reprimir os demais e mantê-los sob controle. Capitães de mato negros que caçavam seus irmãos fugidos, capoeiristas pagos para atacarem terreiros de candomblé, incorporação de grande quantidade de jovens negros nas polícias e forças armadas, convocação para combater rebeliões, como a de Canudos e Contestado, são exemplos da utilização de negros contra negros ao longo da nossa história.
Havia entre eles quem acreditasse ter conquistado de maneira individual o espaço que, coletivamente, era negado para o seu povo, iludindo-se com a idéia de que estaria sendo aceito e incluído naquela sociedade. Ansiosos pela suposta aceitação, sentiam necessidade de se mostrarem confiáveis, cumprindo a risca o que se esperava deles, radicalizando nas ações, na defesa dos valores dos poderosos e da ideologia do “establishment” com mais vigor e paixão do que os próprios membros das elites. A tragédia, para estes indivíduos – de ontem e de hoje -, se estabelece quando, depois de cumprida a função para a qual foram cooptados são devolvidos à mesma exclusão e subalternidade social dos seus irmãos.

São inúmeros os exemplos deste descarte e o mais notório é a história de Celso Pitta, eleito prefeito da maior cidade do país, apoiado pelos setores reacionários, com a tarefa de implementar sua política excludente. Depois de alçado aos céus, derrotando uma candidata de esquerda que, quando prefeita privilegiou a população mais pobre – portanto, negra – foi atirado ao inferno por aqueles que anteriormente apoiaram sua candidatura e sua administração. Execrado pela mídia que ajudou a elegê-lo, abandonado por seus padrinhos políticos, acabou processado e preso, de forma humilhante, de pijama, algemado em frente às câmeras de televisão. Morreu no ostracismo, sepultado física e politicamente, levando consigo as ilusões daqueles que consideram que a questão racial passa ao largo das opções político/ideológicas.

A esquerda, por suas origens e compromissos, em que pese o fato de existirem pessoas racistas que se auto intitulam de esquerda, comporta-se de maneira diversa: foi um governo de esquerda que nomeou cinco ministros de Estado negros; promulgou a lei 10.639, que inclui a história da África e dos negros brasileiros nos currículos escolares; criou cotas em universidades públicas; titulou terras de comunidades quilombolas e aprofundou relações diplomáticas, econômicas e culturais com o continente africano.

Joaquim Barbosa se tornou o primeiro ministro negro do STF como decorrência do extraordinário currículo profissional e acadêmico, da sua carreira e bela história de superação pessoal. Todavia, jamais teria se tornado ministro se o Brasil não tivesse eleito, em 2003, um Presidente da República convicto que a composição da Suprema Corte precisaria representar a mistura étnica do povo brasileiro. Com certeza, desde a proclamação da República e reestruturação do STF, existiram centenas, talvez milhares de homens e mulheres negras com currículo e história tão ou mais brilhantes do que a do ministro Barbosa. Contudo, nunca passou pela cabeça dos presidentes da República – todos oriundos ou a serviço das oligarquias herdeiras do escravismo – a possibilidade de indicar um jurista negro para aquela Corte. Foi necessário um governo de esquerda, com todos os compromissos inerentes à esquerda verdadeira, para que seu mérito fosse reconhecido.

A despeito disso, o ministro Barbosa, em uníssono com o Procurador Geral da República, considera não haver necessidade de provas para condenar os réus da Ação Penal 470. Solidariza-se com as posições conservadoras e evidentemente ideológicas de alguns dos demais ministros e, em diversas ocasiões procura ser “mais realista do que o próprio rei”. Cumpre exatamente o roteiro escrito pela grande mídia ao optar por condenar não uma prática criminosa, mas um partido e um governo de esquerda em um julgamento escandalosamente político, que despreza a presunção de inocência dos réus, do instituto do contraditório e a falta de provas, como explicitamente já manifestaram mais de um dos integrantes daquela Corte. Por causa “desses serviços prestados” é alçado aos céus pela mesma mídia que, faz uma década, milita contra todas as iniciativas promotoras da inclusão social protagonizadas por aquele governo, inclusive e principalmente, àquelas que tentam reparar as conseqüências de 350 anos de escravidão e mais de um século de discriminação racial no nosso país. O ministro vive agora o sonho da inclusão plena, do poder de fato, da capacidade de fazer valer a sua vontade. Vive o sonho da aceitação total e do consenso pátrio, pois foi transformado pela mídia em um semideus, que “brandindo o cajado da lei, pune os poderosos”.

Não há como saber se a maximização do sonho do ministro Joaquim Barbosa é entrar para a história como um juiz implacável, como o mais duro presidente do STF ou como o primeiro presidente da República negro, como já alardeiam, nas redes sociais e conversas informais, alguns ingênuos, apressados e “desideologizados” militantes do movimento negro. O fato é que o seu sonho é curto e a duração não ultrapassará a quantidade de tempo que as elites considerarem necessário para desconstruir um governo e um ex-presidente que lhes incomoda profundamente.

Elaborar o maior programa de transferência de renda do mundo, construir mais de um milhão de moradias populares, criar 15 milhões de empregos, quase triplicar o salário mínimo e incluir no mercado de consumo 40 milhões de pessoas, que segundo pesquisas recentes é composto de 80% de negros, é imperdoável para os herdeiros da Casa Grande. Contar com um ministro negro no Supremo Tribunal Federal para promover a condenação daquele governo é a solução ideal para as elites, que tentam transformá-lo em instrumento para alcançarem seus objetivos.

O sonho de Joaquim Barbosa e a obsessão em demonstrar que incorporou, na íntegra, as bases ideológicas conservadoras daquele tribunal e dos setores da sociedade que ainda detém o “poder por trás do poder” está levando-o a atropelar regras básicas do direito, em consonância com os demais ministros, comprometidos com a manutenção de uma sociedade excludente, onde a Justiça é aplicada de maneira discricionária.

A aproximação com estes setores e o distanciamento dos segmentos à quem sua presença no Supremo orgulha e serve de exemplo, contribuirão para transformar seu sonho em pesadelo, quando àqueles que o promoveram à condição de herói protagonizarem sua queda, no momento que não for mais útil aos interesses dos defensores do “apartheid social e étnico” que ainda persiste no país.

Certamente não encontrará apoio e solidariedade nos meios de esquerda, que são a origem e razão de ser daquele que, na Presidência da República, homologou sua justa ascensão à instância máxima do Poder Judiciário. Dos trabalhadores das fábricas e dos campos, dos moradores das periferias e dos rincões do norte e nordeste, das mulheres e da juventude, diretamente beneficiados pelas políticas do governo que agora é atingido injustamente pela postura draconiana do ministro, não receberá o apoio e o axé que todos nós negros – sem exceção – necessitamos para sobreviver nessa sociedade marcadamente racista.

Ramatis Jacino é professor, mestre e doutorando em História Econômica pela USP e
presidente do INSPIR – Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial

9 de outubro de 2012

O vencedor foi Lula

Eu pergunto quando tempo nossos analistas de plantão vão levar para reconhecer o grande vitorioso do primeiro turno da eleição municipal.

Não, não foi Eduardo Campos, embora o PSB tenha obtido vitorias importantes no Recife e em Belo Horizonte.

Também não foi o PDT, ainda que a vitória de José Fortunatti em Porto Alegre tenha sido consagradora. Terá sido o PSOL? Os “novos partidos”?

O grande vitorioso de domingo foi Luiz Inácio Lula da Silva e é por isso que os coveiros de sua força política passaram o dia de ontem trocando sorrisos amarelos.
Nem sempre é fácil reconhecer o óbvio ululante. É mais fácil lembrar a derrota do PT no Piauí, ou em São Luís.

Nosso leitor Roberto Locatelli lembra: o PT passou o PMDB  e foi o partido que mais acumulou votos na eleição. Tinha 550 prefeituras. Agora tem mais de 612.

Vamos combinar: a  principal aposta de Lula em 2012 foi Fernando Haddad que, superando as profecias do início da campanha, não só passou para o segundo turno mas entra nessa fase da disputa em posição bastante favorável. Em São Paulo se travou a mãe de todas as batalhas.

Imagino as frases prontas e as previsões sombrias sobre o futuro de Lula e do PT se Haddad tivesse ficado de fora…

A disputa no segundo turno está apenas no início e é cedo para qualquer previsão.

Mas é bom notar que as  pesquisas indicam que Haddad é a segunda opção da maioria dos eleitores de Celso Russomano. Uma pesquisa disse até que Haddad poderia chegar em segundo no primeiro turno, mas tinha boas chances de vencer Serra, no segundo.

Qual o valor disso agora? Não sei. Mas é bom raciocinar com todas as informações.

Quem assistiu a pelo menos 30 minutos dos debates presidenciais sabe que Gabriel Chalita já tem lado definido desde o início – como adversário de José Serra. O que vai acontecer? Ninguém sabe.

O próprio Serra tem uma imensa taxa de rejeição, que limita, por si só, seu potencial de crescimento.

O apoio de  Russomano tem um peso relativo. Se ele não conseguia controlar aliados quando era favorito e podia dar emprego para todo mundo, inclusive para uma peladona de biquini cor de rosa descrita como assessora, imagine agora como terá dificuldades para manter a, digamos, fidelidade partidária…

O mais provável é que seu eleitorado se divida em partes mais ou menos iguais.

Não vejo hipótese da Igreja Universal ficar ao lado de José Serra. Nem Silas Malafaia com Haddad.

A votação de Haddad confirma a liderança de Lula e a disposição dos eleitores em defender o que ele representa. Mostra que o ambiente político de 2010, que levou a eleição de Dilma Rousseff, não foi revertido. Isso não definiu o resultado em cada cidade mas ajudou a compor a situação no país inteiro.

Os 40% de votos que Patrus Ananias obteve em Belo Horizonte mostram um desempenho bem razoável, considerando que o tamanho do  condomínio adversário.

Quem define a boa vitória de Lacerda como uma vitória de Aécio sobre Dilma incide no pecado da ejaculação precoce.

O grande derrotado do primeiro turno, que mede a força original de cada partido, não aquilo que se pode conquistar com alianças da segunda fase, foi o PSDB.

O desempenho tucano sequer qualifica o partido como oponente nacional do PT. Perdeu eleição em Curitiba, onde seu concorrente tinha apoio do governador de Estado, desapareceu em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, terra do vice de José Serra em 2010 – que não é tucano, por sinal. Se a principal vitória do PSDB foi com um candidato do PSB é porque alguma coisa está errada, concorda?

Respeitado por ter chegado em primeiro lugar em São Paulo, Serra já teve desempenhos melhores.

As cenas finais da campanha foram os votos do julgamento do mensalão, transmitidos em horário nobre durante um mês inteiro. Tinham muito mais audiência do que os programas do horário político.

Menino pobre e preto, Joaquim Barbosa já vai sendo apresentado como um contraponto a Lula…

Antes que analistas preconceituosos voltem a dizer que a população de renda mais baixa tem uma postura menos apegada a princípios éticos – suposição que jamais foi confirmada por pesquisadores sérios  — talvez seja prudente recordar que o eleitor é muito mais astuto do que muitos gostariam.

Sabe separar as coisas.

Aprendeu a decodificar o discurso moralista,  severo com uns, benigno com outros, como a turma do mensalão do PSDB-MG, os empresários que jamais foram denunciados na hora devida…

Anunciava-se, até agora, que a eleição seria  nacionalizada e levaria a  um julgamento de Lula.
Não foi. O pleito mostra que o eleitor não mudou de opinião.

O eleitor mostrou, mais uma vez, que adora rir por último

Fonte: Revista Época

Afinal, quem venceu?

Por Wladimir Pomar – 09/10/12
http://pagina13.org.br

As eleições municipais de 2012, a rigor, não terminaram. Em 22 cidades com população acima de 200 mil habitantes, incluindo 8 capitais, haverá segundo turno. Apesar disso, a grande imprensa, num bloco uníssono, já proclamou o PSB como o grande vencedor das eleições, o que o cacifaria para apresentar candidato à presidência, em 2014. Em outras palavras, não pregam prego sem estopa e, na coerente e inarredável meta de dividir a esquerda e isolar o PT, aproveitam qualquer oportunidade. Convenhamos que é digno de admiração esse empenho dopartido da grande mídia.

Numa retrospectiva geral, o PSB, o PDT, o PT e o PSOL cresceram. Ou seja, os partidos à esquerda aumentaram sua participação nos governos municipais. Alguns outros partidos menores, cujas características ideológicas e políticas nem sempre são suficientemente claras, também cresceram. Todos, à custa do decréscimo dos partidos de centro, como o PMDB, e de direita, como o PSDB e o DEM, este último havendo desabado em mais de 40%.

Assim, para grande desgosto de alguns extremistas de direita, o teatral julgamento do STF, como pensamos, praticamente teve influência nula sobre as eleições. As derrotas do PT em Recife, Vitória e Porto Alegre se deveram mais aos problemas e desacertos locais do próprio PT do que à capacidade de seus adversários. Já a participação do PT em São Paulo, Campinas, Fortaleza e Niterói, com candidaturas tidas como impossíveis de galgar o segundo turno, resultou do empenho de sua militância. O mesmo se pode dizer da reconquista de algumas cidades em que o PT já fora governo, como Angra dos Reis e Osasco, esta dada como perda inevitável por todos os analistas políticos.

A preocupação generalizada dos eleitores esteve voltada, e certamente se manterá no segundo turno, para as questões que poderíamos chamar de desenvolvimento econômico e urbano: infraestrutura de transportes, moradia, saúde, educação, saneamento, emprego, condições ambientais, esporte e lazer, não necessariamente nessa ordem. Além disso, parece haver um declínio considerável do prestígio dos políticos considerados velhos e enredados em chicanas e corrupções, aflorando um aparente e espontâneo desejo de substitui-los por políticos mais jovens, ainda não manchados por aqueles defeitos.

Na verdade, o partido da grande mídia desempenhou um papel importante na desmoralização da política, talvez se esquecendo de que estava manejando uma faca de dois gumes. A rigor, ela atingiu com muito mais força os partidos e políticos que apoiava, ao mesmo tempo em que beneficiou, paradoxalmente e apenas em certa medida, partidos à esquerda. De qualquer modo, talvez mais do antes, a esquerda precise dar mais atenção a esses dois aspectos da percepção política atual e voltar-se com mais decisão para as questões de desenvolvimento econômico e urbano e para formação dos quadros novos.

As prefeituras, especialmente as das pequenas e médias cidades, não tratam do desenvolvimento econômico. Ou quando tratam, o fazem atabalhoadamente. Não levam em conta as potencialidades e limites dos municípios e de seu entorno, e não combinam ações de industrialização com os devidos cuidados urbanísticos, ao meio ambiente e ao bem-estar da população. Por exemplo, é difícil conhecer alguma cidade que tenha uma política definida de arborização de suas vias urbanas e de construção de espaços públicos arborizados para usufruto e lazer da população. Alguns, diante das dificuldades para realizar aquela combinação, preferem desistir de empreendimentos que geram empregos e riqueza para o município. Outros esperam passivamente que empreendimentos econômicos ideais caiam do céu, nada fazendo para atraí-los e instalá-los.

Em geral, pensam resolver os problemas de transportes, moradia, saúde, educação, saneamento, emprego, condições ambientais, esporte e lazer apenas com os repasses estaduais e nacionais, sem participarem da geração ativa de riqueza, que só pode ser efetivada, em grande escala, pela indústria e, em menor escala, pela agricultura. Serviços e comércio só colaboram efetivamente para a geração de riqueza em casos especialíssimos, como o de cidades que são centros de redistribuição logística, centros financeiros, centros turísticos ou centros de jogatina. Tirando isso, nas cidades sem indústria e sem forte agricultura no entorno, os serviços e o comércio funcionam apenas como distribuidores de mercadorias e canais de sucção das pequenas riquezas locais.

Nessas condições, no atual momento por que passa o Brasil, realizando um sério esforço para retomar sua industrialização e seu desenvolvimento econômico e social, e diante das demandas apresentadas pelo eleitorado, os novos governos municipais precisarão engajar-se também na tarefa do desenvolvimento econômico e urbano.

Paralelamente a isso, os partidos de esquerda precisarão rever seriamente seus processos de formação política, de modo a preparar as novas gerações de militantes como quadros capazes de enfrentar as disputas eleitorais, não só para as câmaras e governos municipais, mas também para as câmaras e governos estaduais e federais. Já que está imposta à esquerda disputar governos e poder segundo as regras de jogo estabelecidas pela própria burguesia, é preciso formar milhares de quadros capazes de combinarem uma profunda atividade social e politica entre as camadas trabalhadoras, ajudando-as para organizar-se e mobilizar-se na conquista de direitos não atendidos e de novos direitos, com uma atividade institucional, parlamentar e governamental, que tenha como eixo o atendimento daqueles direitos e as reformas políticas indispensáveis à sua consolidação.

Em termos mais sumários, a esquerda precisa de quadros que sejam ao mesmo tempo, tanto propagandistas, agitadores, organizadores e  mobilizadores populares e democráticos, quanto estadistas a serviço do povo. Portanto, se alguém ganhou nessas eleições, foi a esquerda como um todo, embora tendo diante de si novos e maiores desafios.



Entre os maiores, PT é o único partido que cresce

http://www.cartamaior.com.br

PMDB e PSDB estão à frente no ranking nacional de número de prefeitos e vereadores, mas ambos mantêm tendência de queda. O PT, ao contrário, aumentou em 12% a quantidade de prefeitos eleitos, e ainda segue na disputa em 22 grandes cidades. Em relação ao contingente de vereadores, cresceu 22%. “Se nós somarmos o número de vice-prefeitos em chapas puras e em chapas com aliados, nós estaremos presentes em 1.119 municípios”, afirma o presidente do PT, Rui Falcão.

Brasília - Dos três maiores partidos brasileiros, o PT foi o único que aumentou o número de prefeituras nas eleições municipais deste domingo. Passou de 558, em 2008, para 624. Um crescimento de 12%. Seu principal rival, o PSDB, continua na sua frente, mas registrando a tendência de queda estabelecida desde as eleições passadas: encolheu de 791 prefeituras para 689. O PMDB, aliado do PT e líder do ranking de municípios, caiu de 1.204 prefeituras para 1.019.

“O PT considera ter obtido nesta eleição um resultado excelente. Nós crescemos em número de prefeitos, de vereadores e de vice-prefeitos. E se nós somarmos o número de vice-prefeitos em chapas puras e em chapas com aliados, nós estaremos presentes em 1.119 municípios”, afirmou o presidente do PT, Rui Falcão, em coletiva à imprensa, nesta segunda (8), em São Paulo.

Dentre os bons resultados do partido, ele destacou o da capital paulista, que terá Fernando Haddad disputando o segundo turno com José Serra, do PSDB. Também citou a eleição dos prefeitos dos municípios paulistas de São José dos Campos, Jacareí, Guatuba, e a disputa em Taubaté, todos eles na região do Vale do Paraíba, reduto do governador tucano, Geraldo Alkmin. E, ainda, os resultados em Minas Gerais e Bahia, onde o partido fez o maior número de prefeituras: 114 e 96, respectivamente.

“Se nós somarmos também as vitórias dos partidos aliados, o projeto da presidente Dilma, do PT e do ex-presidente Lula foi consagrado neste primeiro turno. E estamos bastante otimistas com os segundo turno. Já estamos em contato com os aliados potenciais e acreditamos que, nos lugares em que não há confronto direto, a tendência é que estejamos juntos contra a oposição”, acrescentou.

Crescimento e diminuição recordes
O PSB foi o partido que mais cresceu no país: 40%. Conquistou 416 prefeituras, contra as 310 de 2008. Mas o partido que conseguiu alçar o posto de quarto maior do país foi o PSD, nascido de uma dissidência do DEM, no ano passado: 463 prefeitos eleitos. O DEM, consequentemente, foi o que mais encolheu. Conquistou 271 prefeituras, contra 495 nas eleições passadas.

Grandes cidades e segundo turno

Na análise por porte de cidades, o PT se mantém na frente nas maiores. Garantiu a vitória em oito dos 85 principais municípios brasileiros e, a exemplo do que ocorrerá na capital paulista, disputará o segundo turno em 22 das cidades com mais de 200 mil eleitores. Seu principal concorrente, o PSDB, ficou com o segundo melhor resultado: elegeu os prefeitos de seis dessas cidades e se mantém na disputa em 16. O PMDB elegeu quatro e continua na disputa em 20 cidades.

O PSB também registrou crescimento expressivo. Venceu em cinco grandes cidades e concorre em mais seis. O PDT venceu em três, e agora disputa outras oito. O PP elegeu dois prefeitos e mantém quatro candidatos na corrida. O PSD conquistou uma prefeitura e segue na briga por mais cinco. Já o DEM conquistou três grandes prefeituras e se mantém na disputa em outras duas.

Pequenos e médios municípios

Nos pequenos municípios (até 50 mil habitantes), os três maiores partidos brasileiros mantém seu domínio. O PMDB elegeu 320 prefeitos. O PT, 274 e o PSDB, 238. Na sequência estão PSD, com 200, e PSB, com 190.

A supremacia do PMDB, PT e PSDB se repetiu nos municípios de médio porte (de 50 mil a 199 mil habitantes). O PMDB venceu em 64 prefeituras, o PT em 57 e o PSDB em 54. A novidade, neste caso, foi a inclusão do PDT, com 25 eleitos. PSD e PSB venceram em 23 municípios cada um.

Vereadores eleitos

O PT foi o partido que mais cresceu em números de vereadores: 5.067, contra os 4.168 do último pleito, ou 22% a mais. À frente dele, entretanto, está o líder PMDB, com 7.825 eleitos, 8% a menos do que os 8.475 das eleições passadas. E também o PSDB, com 5.146 eleitos, 13% a menos do que em 2008.

Em quarto lugar ficou o PP, com 4.840, 6% menos que nas últimas eleições. O PSD elegeu 4.570 nomes, seguido pelo PDT, que cresceu 1% em relação a 2008, e PSB, que ampliou seu quadro em 18%.

Dados oficiais

Os números oficiais das eleições deste domingo ainda não foram divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os dados utilizados nesta matéria se baseiam nas estimativas dos partidos. O presidente do PT, por exemplo, observa que a legenda computou 624 prefeituras para o PT, mas os jornais falam em 627. Portanto, pode haver alterações.

27 de setembro de 2012

MUNICÍPIO SOCIALISTA, NA ESPANHA, RESISTE À CRISE

Município socialista na Espanha resiste à crise

Desdeque conseguiu a desapropriação de terras improdutivas a partir da pressão dos moradores, Marinaleda implementou um modelo cooperativista de produção que envolve rodízio na lavoura e na indústria e hoje sustenta índices de emprego mais elevados do que os da Espanha. Segundo a prefeitura, o desemprego não passa de 4%, enquanto a oposição diz que chega a 14%. Seja como for, são números muito inferiores aos 25% do país.

Marinaleda - Quando em 2008 a crise do sistema financeiro dos Estados Unidos chegou à Europa, causando também recessão nos países do Velho Mundo, cerca de 200 jovens migraram a Marinaleda, um pequeno povoado espanhol no coração da Andaluzia.

Parte deles voltava para casa depois de ter perdido o trabalho na construção civil, que era então o grande setor em expansão no país ibérico e cuja bolha explodiu com a falta de crédito na economia a partir da quebra de bancos norte-americanos. Outros vinham em busca do El Dorado espanhol: a festejada terra do pleno emprego propagandeada pela administração municipal.

A fama da cidade, entretanto, não tem nada de milagroso ou mítico. É fruto de três décadas de uma briga comprada por toda a população e liderada pelo líder sindical Juan Manuel Sánchez Gordillo: a reforma agrária.

Marinaleda perdeu a metade de seus habitantes durante a ditadura do general Francisco Franco. A pobreza a que estavam condicionados os que ficaram fez com que se gestasse no íntimo dessa sociedade um desejo de mudança que não foi saciado com o retorno da democracia no final dos anos 70.

Organizados em torno do Sindicato de Obreros del Campo, criado em 1977, os trabalhadores rurais iniciaram uma sistemática ocupação de terras improdutivas nos arredores da cidade, exigindo que fossem repartidas para que todos pudessem trabalhar. A luta mais conhecida de todas é a origem da boa reputação de Marinaleda: a fazenda de El Humoso.

“Todas as manhãs caminhávamos 8 quilômetros entre o centro urbano e a estância. Logo que nos instalávamos, vinha a guarda civil nos correr de lá. Em alguns casos eram bem violentos; chegaram a cortar as árvores para que não tivéssemos sombra para descansar”, lembra o agricultor Joaquin Juan Diaz, hoje um dos sócios de uma das cooperativas responsáveis pela produção em El Humoso.

“Mas não nos assuntavam: na manhã seguinte, marchávamos até lá novamente e a polícia nos mandava embora, mas voltávamos no dia seguinte, e no outro, e no outro, e no outro”, recorda, admirando o horizonte de oliveiras que hoje é (também) sua propriedade.

El Humoso pertencia ao Duque do Infantado, que assim como essa, possuía outras tantas terras no sul da Espanha. A maior parte delas improdutiva. “Era muito comum durante a guerra da Reconquista, no século XV, que os reis dessem terras como pagamento aos que lutavam por eles contra os mouros, no sul”, explica o deputado e porta-voz do grupo parlamentário da Esquerda Unida da Andaluzia, José Antonio Castro.

As caminhadas diárias – e os confrontos contra a guarda civil – duraram seis anos até que a Junta da Andaluzia decidiu desapropriar parte da terra e deixar que os moradores a explorassem. O primeiro que fizeram foi pintar no muro externo da propriedade a frase que retocam ano a ano com denodo. “Essa fazenda é para os trabalhadores desempregados de Marinaleda”.

Em seguida dividiram-se em oito cooperativas e com os subsídios estatais compraram máquinas, ferramentas e sementes para a produção. Oito anos depois deram um novo passo e fundaram a primeira agroindústria de propriedade coletiva na cidade, a Humar Alimentos, cujo nome foi criado a partir das iniciais de Humoso e Marinaleda.

“É fundamental colocar os meios de produção nas mãos do agricultor e do operário: assim eles recebem o que é justo pelo seu trabalho e o consumidor paga menos pelo alimento”, costuma discursar Sánchez Gordillo.

Jornada igual para todosAs duas iniciativas associativistas de Marinaleda são o que garantem que em 2012 o município sustente taxas de desemprego bastante menores que os nacionais. Segundo a prefeitura, os parados na cidade não passam de 4%, enquanto a oposição defende que chegam a 14%.

De uma maneira ou outra, são números muito inferiores aos 25% da população espanhola que não consegue trabalho em plena crise. “O campo se caracteriza por não ter índices estáveis de ocupação. É verdade que há meses em que o desemprego é nulo na cidade. Mas há épocas de menor atividade tanto na fazenda como na agroindústria”, pondera Joaquin Diaz.

Entre 70 e 120 cooperativados trabalham de maneira fixa o ano todo na lavoura e na agroindústria. Em períodos de entressafra, eles aproveitam para fazer a manutenção de equipamentos, limpeza dos campos, a contabilidade.

Por este serviço recebem 1.200 euros mensais, o mesmo salário dos funcionários públicos e do próprio Sánchez Gordillo, eleito nove vezes prefeito entre 1979 e 2011 – ele nunca recebeu pelo cargo eletivo municipal, era remunerado como professor de História e nos últimos anos como deputado da Andaluzia.

Quando há carga extra, se contrata por jornada homens e mulheres na cidade. O cenário laboral de Marinaleda se complicou a partir de 2008 não apenas pela retração da economia, que reduz os preços pagos pelos grandes distribuidores – as multinacionais, que são o alvo do momento dos protestos na cidade – e a demanda dos consumidores. Com o retorno dos jovens que haviam ido para a cidade e a chegada de migrantes de outras regiões, há mais competição na hora de conseguir um trabalho.

O que não significa que haverá mais desempregados, senão que cada um trabalhará menos horas, conforme explica a vice-prefeita de Marinaleda, Esperanza Saavedra Martín: “Se há necessidade de 100 agricultores para 20 dias de trabalho e são 100 candidatos, cada um vai trabalhar 20 dias. Mas se 200 pessoas se apresentarem, cada uma vai ir para o campo durante 10 dias”.

Outra diferença com relação aos plantios tradicionais é que tanto El Humoso como a Humar Alimentos pagam uma diária única para todos os seus trabalhadores: 47 euros por jornada, sem fazer distinção entre a função e até mesmo a produtividade de cada um.

É folclórica, aliás, uma fala de Sánchez Gordillo durante uma assembleia na qual queixavam-se alguns trabalhadores da falta de comprometimento e de efetividade de outros colegas. “Se há quem trabalha menos, os que podem produzir mais devem fazer o dobro de esforço a que estão costumados para ajudar a estes companheiros”.

O trabalho se reparte através de sorteios nas assembleias públicas do município. Embora o vereador Hipólito Aires, do Partido Socialista Espanhol (PSOE) – que em Marinaleda faz oposição à sigla no poder, a Esquerda Unida – acrescente que só são incluídos na loteria laboral aqueles que participam das marchas e protestos convocados pelo prefeito. “Cada tipo de atividade política conta um número específico de pontos e só pode apresentar-se para uma vaga aqueles que atingem um mínimo”, denuncia.

Exportação para Venezuela começou neste anoA aposta das cooperativas para que haja ocupação plena durante a maior parte do ano é diversificar a produção. Setembro é o mês da colheita dos pimentões – há três variedades cultivadas em El Humoso, que em seguida são beneficiadas na Humar Alimentos –, e a previsão de Esperanza era que se incorporassem ao contingente fixo das cooperativas entre 300 e 500 trabalhadores durante dois meses. Em seguida será o turno das beterrabas, dos girassóis, do trigo, da alcachofra.

Três vezes ao ano eles recolhem azeitonas do plantio de oliveiras. “Em 2011 colhemos 3,8 milhões de quilos: 3 milhões para a fabricação de azeite e o restante de azeitonas de mesa”, contabiliza Manuel Martín Fernández, que em um domingo se dedicava a limpar os tanques de estocagem do líquido, que em breve receberia a parte da produção de setembro.

A colheita, entretanto, ficou pequena com o início das relações comerciais com a Venezuela, depois que o presidente Hugo Chávez conheceu a história de Marinaleda e de seu prefeito através de uma reportagem na TeleSur. Em 2012 pela primeira vez El Humoso entregou ao país cerca de 70 milhões de litros de azeite, um volume 20 vezes superior ao que a fazenda produz.

A saída foi se associar com cooperativas de municípios vizinhos que seguissem parâmetros de produção e de trabalho semelhantes aos de Marinaleda. “Tem que pagar bem o agricultor que recolhe azeitona e o empregado da fábrica, e possuir uma qualidade como a nossa, pois não misturamos 'orujo' no nosso azeite”, completa Joaquin Díaz.

“É muito importante que haja solidariedade prática entre os países, entre as cooperativas, entre os distintos grupos. Ainda mais num momento difícil como esse”, reflete Gordillo, referindo-se ao momento de crise. Ele planeja estabelecer relações semelhantes com Nigarágua, Equador e Bolívia. “Seria uma boa ideia que o projeto Alba se estendesse pelo sul da Europa”, conclui.

Apesar da ajuda bem-vinda de Chávez, o prefeito defende um modelo misto de sustentabilidade da produção, em que o mercado interno também seja atendido, numa relação direta entre produtor, pequeno comércio e consumidor

POVOADO ESPANHOL DE 2.000 HABITANTES ESTÁ NO MAPA-MUNDI DA ESQUERDA

Povoado espanhol de 2 mil habitantes está no mapa-mundi da esquerda

Parceira de Cuba e Venezuela, Marinaleda atrai jornalistas e curiosos de todos os cantos do planeta que desejam conhecer o sistema de participação baseado em assembleias, a divisão do trabalho na fazenda ocupada de El Humoso a distribuição de casas populares que evita a especulação imobiliária. Carta Maior contará em detalhes a história de luta deste povoado espanhol em uma série de reportagens a partir dessa segunda-feira. A reportagem é de Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, direto de Marinaleda, Espanha.

Marinaleda - No bar do Sindicato de Obreros del Campo (SOC), em Marinaleda, nenhum frequentador respeita a proibição de fumar em locais fechados. Este município de 2 mil habitantes no sul da Espanha tem suas regras próprias e muitas divergem das oficiais editadas pelo Parlamento Nacional e pelo Rei Juan Carlos. Sua majestade, por exemplo, não ocupa a foto ao centro do gabinete do prefeito, Juan Manuel Sánchez Gordillo.

Emoldurado na parede aparece Che Guevara, enquanto detrás de sua mesa, a bandeira da República espanhola acompanha os estandartes da cidade e da Andaluzia, comunidade autônoma a que pertence. “Nosso escudo não tem coroa pela simples razão de que somos republicanos e portanto ninguém pintaria aqui um símbolo monárquico”, justifica o texto na página oficial de Marinaleda.

Se dois forasteiros entram no bar do SOC, ninguém pergunta o que eles vieram fazer ali, como se poderia imaginar que pudesse acontecer em uma minúscula cidade cortada pela estrada A-388 e que não possui nenhum castelo, palácio ou jardim famoso que atraia turistas. “De que país são vocês? Jornalistas, não é?”, dispara o produtor rural Pepele Cordejo, evidenciando a atração que o povoado provoca em profissionais da imprensa e outros curiosos.

De fato, a visita da equipe de Carta Maior a Marinaleda coincidiu com a de um repórter francês da revista L'Humanité Dimanche em um final de semana de setembro. No mês anterior, o município e seu prefeito apareceram em matérias da revista norte-americana Time e do diário inglês Financial Times. Outro periódico de Londres, The Guardian, elegeu Sánchez Gordillo “um dos cinco exemplos de desobediência civil” dos últimos tempos, colocando-o ao lado do líder independentista indiano Mahatma Gandhi.

É certo que ambos compartilharam do mesmo método, a greve de fome, para fazer valer suas reivindicações. Em Marinaleda a estratégia foi aplicada pela primeira vez em 1980, nos primeiros anos de democracia depois da longa ditadura do general Francisco Franco. O município espanhol, porém, recorreu ainda a táticas menos passivas para conseguir a desapropriação de uma fazenda que hoje é administrada por cooperativas de moradores da localidade.

A conquista de El HumosoBasta citar o assunto da luta pela terra perto do balcão do bar do SOC para atrair a vários frequentadores, todos participantes de alguma atividade relacionada com a desapropriação de El Humoso. Alguns eram ainda crianças quando os pais se rebelaram contra os latifundiários que não produziam em suas propriedades.

Instigada pelo já prefeito Sánchez Gordillo, que desde 1979 não perde uma eleição em Marinaleda, a população iniciou um movimento de ocupação de terras massivo que durou sete anos. Primeiro tomaram um pântano na cidade vizinha de Cordobilla para exigir que o Estado levasse água até a propriedade de El Humoso, que então pertencia ao Duque do Infantado e era improdutiva.

Logo veio a pressão para desapropriar a fazenda. A Junta da Andaluzia comprou uma parte expressiva da área, 1.200 hectares, que passaram a ser geridos pelos trabalhadores.

Hoje, 21 anos depois da conquista das terras, essa porção de chão é o que garante que Marinaleda sobreviva à crise econômica que assola a Espanha, mantendo uma taxa de desemprego bastante inferior à nacional. O trabalho, sazonal, é repartido de maneira que todos os interessados contribuam com o mesmo número de horas na lide do campo, recebendo um salário também idêntico.

Talvez traumatizados com a repressão das forças de segurança do governo durante o período de ocupações de terra, os habitantes de Marinaleda decidiram abrir mão desse serviço na cidade. Não há um só policial nas ruas.

Administração socialistaO bar do SOC e o próprio sindicato ocupam um sobrado branco com janelas e portas pintadas de verde que abriga ainda o auditório do pleno da assembleia de Marinaleda, um órgão consultivo no qual todos os moradores devem tomar assento quando é convocado.

Nessas reuniões se reparte o trabalho na fazenda de El Humoso e na Humar Agroindústria, também de propriedade das cooperativas. Entre outras coisas é onde se decide quem poderá ocupar cada uma das casas populares construídas coletivamente entre os habitantes sobre terrenos doados pela prefeitura, para evitar a especulação imobiliária e permitir que todos tenham direito à moradia digna.

É também na assembleia que se faz a última etapa da discussão do orçamento participativo - em vigor desde 1979 em Marinaleda - e onde se decide, por exemplo, eventuais subidas de impostos ou modificações na jornada laboral. “Qualquer tema ou problema relativo à cidade levamos à assembleia, em todos os assuntos. Pensamos que a melhor maneira de decidir é coletivamente”, justifica o prefeito.

Oposição inexpressivaNo bar do SOC todos são de esquerda, inclusive aqueles que possuem propriedade privada, como Pepele. Ele, entretanto, não se atreve a participar das assembleias porque diz que seria mal visto pelos conterrâneos.

Juan Manuel Sánchez Gordillo conduz pessoalmente cada uma das discussões públicas, o que faz com que receba críticas de uns poucos moradores pelo excesso de personalismo que confere à cena política local.

Os integrantes da oposição supostamente se reúnem em outro estabelecimento para tomar suas cervejas e aperitivos enquanto conspiram contra a situação. O local, entretanto, esteve fechado durante os três dias em que estivemos na cidade. Pelas ruas poucos se atrevem a desafiar o sistema implementado pelo prefeito; se o fazem, pedem sigilo sobre sua identidade.

Curioso é que até a oposição em Marinaleda é de esquerda. Entre os 11 vereadores há dois contrários ao governo de Gordillo. São do Partido Socialista (PSOE), embora opinem que o sistema de assembleísmo é desnecessário e defendam que as pessoas devem ter “liberdade para não se unir às marchas e protestos”.

Do conservador Partido Popular (PP), sigla do presidente do governo espanhol Mariano Rajoy, não há nem sinal. Assim como os conservadores, jovens e mulheres também são uma espécie rara neste estabelecimento da cidade.

Arte subversivaO ambiente do bar do SOC é igual à maioria dos botecos espanhóis: meia luz, televisão num volume bastante elevado, senhores jogando dominó e tomando “chupitos”, “cañas” e cafés. Ao fundo, entretanto, chama a atenção do visitante uma exposição de fotografias intitulada “Espólio e massacre da Palestina”.

A luta dos palestinos por um território próprio é assunto recorrente na cidade: foi tema da festa anual do povoado em 2008 e também se destaca na fachada de alguns prédios públicos de Marinaleda. Os murais formam um conjunto de pinturas políticas de apoio ao comunismo, realizadas por delegações internacionais que visitaram o município. É uma versão às avessas do East Side Gallery do muro de Berlim.

Ali estão desenhos assinados por espanhóis de diferentes cidades, europeus de países em crise – como a Grécia – e, é claro, de Cuba e Venezuela, cuja relação com Marinaleda é tão estreita que a televisão pública do município retransmite a programação de TeleSur e Cubavisión quando não há grade própria.

Carta Maior contará em detalhes a história de luta deste povoado espanhol em uma série de reportagens a partir dessa segunda-feira

23 de setembro de 2012

Manter a jurisprudência sem os holofotes

http://pagina13.org.br
Por Maria Cristina Fernandes – 21/09/12

O impeachment de Collor nasceu da entrevista do irmão. O mensalão, daquela entrevista de Roberto Jefferson. A acusação de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o chefe da quadrilha do mensalão não tem autoria.

O publicitário Marcos Valério, identificado como autor da acusação, não a assumiu. E seu advogado nega que tenha falado.

O áudio da entrevista pode existir, mas o fato de a revista de maior circulação do país ter publicado capa com uma acusação dessa gravidade sem autoria mostra que o julgamento ora em curso no Supremo tem consequências que extrapolam a dosimetria das penas.
Punição resistirá às pressões contra o mercado engessado?

Se os juízes, pelas indicações do relator no capítulo político do julgamento condenarem por indícios, por que um jornalista precisaria de fonte para publicar uma acusação?

Não é de hoje que se abusa do off, recurso legítimo do jornalismo que protege fontes com informações valiosas em nome do interesse público.

Mas na acusação em curso, paira no ar a dúvida sobre a que público serve a acusação anônima na reta final de uma campanha eleitoral definidora dos exércitos de 2014.

Essa relação nebulosa entre noticiário e interesse público não passa despercebida de quem está na arquibancada.

Repousa esquecida em cruzamentos de uma pesquisa Datafolha (10/08) a avaliação sobre a cobertura do mensalão: 46% dizem que a imprensa tem sido parcial – e 39% a julgam imparcial.


Não dá para atribuir o dado às massas ignaras do lulismo. Quanto maior a escolaridade, maior a percepção. Dos entrevistados que passaram pela universidade, 53% julgam a imprensa parcial. Entre aqueles que têm apenas o ensino fundamental, 41% compartilham a impressão.

Não parece haver dúvidas de que o julgamento tem inovado na interpretação da lei. Mas para aquilatar seu real impacto sobre o combate à corrupção resta saber se a jurisprudência será seguida à risca quando os holofotes se apagarem.

Para reverter a má-fama angariada, a imprensa terá que se dedicar com igual afinco ao julgamento da montanha de casos de corrupção que se acumulam nos tribunais.

Foi graças aos jornalistas que se conheceram os grandes escândalos de corrupção no governo Fernando Henrique Cardoso – Sivam, grampos do BNDES na privatização da Telebras, caso Marka/FonteCindam e, o maior deles, a aprovação da emenda da reeleição.

Ministros foram defenestrados e contratos foram cancelados, mas o entendimento era outro sobre a persecução penal dos envolvidos. Do desdobramento desses casos não se colhe o mais leve indício de que a tese do domínio do fato pudesse um dia vir a evoluir para a interpretação que ganha terreno no Supremo e facilita a condenação de quem está no topo de hierarquias de poder.

A imprensa também será desafiada a manter o arrojo com que se empenha na atual cobertura quando a aplicação dessa jurisprudência se voltar para o setor privado, muito menos aberto à investigação jornalística que o público.

O segundo capítulo do julgamento, que condenou os banqueiros, impôs um padrão de austeridade inédito, por exemplo, na gestão do risco bancário. Para punir um dirigente de empresa não será preciso provar delito maior que a omissão no cumprimento do dever.

Uma coisa é enquadrar o banco Rural, que já havia se tornado um pária no mercado desde o envolvimento em intermediações financeiras com o governo a partir da era Collor.

Outra coisa é aplicar a nova jurisprudência a grandes empresas e bancos. A sanha punitiva – e jornalística – resistirá ao argumento, para além da coerção verbal, de que o mercado, engessado, é um freio ao desenvolvimento econômico?

O que dizer, também, da ameaça de reversão das reformas aprovadas com os votos que o ministro relator assevera terem sido comprados? Bárbara Pombo conta hoje no Valor (pág. E1) que advogados já se movimentam nesse sentido.

Se a oposição conseguir voltar ao poder, o presidente que eleger pode se ver na contingência de defender a constitucionalidade das reformas tributária e previdenciária que seu partido acusou, com o possível beneplácito do Judiciário, de terem sido compradas.

Na hipótese ainda improvável de a mudança na jurisprudência trazer ameaça real ao estabelecido, a reforma do Código Penal sempre pode ser uma saída para fechar a porteira aberta por este julgamento.

O anteprojeto de reforma do código, gestado no gabinete do presidente do Senado, José Sarney, precede o julgamento do mensalão e não se remete aos seus resultados. Mas nada impede que, uma vez iniciada sua tramitação, o texto possa ser abrigo das pressões que devolveriam o país ao seu curso natural de leniência com a corrupção dos donos do poder. E sem exceções.

Ainda não se sabe se o mensalão é a causa para a queda do candidato do PT, Fernando Haddad, nas pesquisas, mas, a julgar pelo Datafolha, a exploração do caso ainda não parece ter surtido os efeitos esperados sobre o PT em São Paulo. Questionados como veriam um próximo prefeito do PRB, do PSDB ou do PT, os entrevistados disseram o seguinte: 15% achariam “ótimo ou bom” se o eleito fosse do PRB; 25% disseram o mesmo de um tucano no poder; e 33% de um petista.

*Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br