10 de novembro de 2012

" ESCOLA NÃO É EMPRE4SA "

“A escola não é diferente de uma fábrica de parafusos apenas porque nela se lida com seres humanos.” Um dos maiores estudiosos brasileiros em gestão escolar, Vitor Henrique Paro discorre neste artigo sobre a dimensão educativa da escola.

Por Vitor Henrique Paro*
http://blog.aticascipione.com.br

Ora, a escola é, sim, uma empresa, se considerarmos o significado geral dessa palavra. Ou seja, empresa é todo empreendimento humano organizado para a produção de algo ou para a busca de fins, com a utilização do esforço humano coletivo.

Sim, pode-se argumentar, mas a escola não é uma empresa como qualquer outra; por isso não lhe é apropriado esse título. Mas, na verdade, isso acontece com toda empresa. Uma fábrica de calçados, por exemplo, também não é uma empresa qualquer, diferenciando-se em muitos aspectos de uma fábrica de automóveis, de um banco ou de um hospital. No entanto, todas elas continuam sendo empresas, embora com características diferentes umas das outras.

Esse raciocínio, todavia, não deve satisfazer os defensores da natureza única da escola. Os que se acham comprometidos com o mundo escolar insistirão que existe na escola alguma coisa de especial que faz dela um empreendimento peculiar. Pode até não haver uma explicação racional, pensam eles, mas “sentem” que esse algo existe e não pode ser ocultado nem mesmo pelo discurso “técnico” dos gestores e burocratas fazedores de políticas públicas.

Um argumento muito usado para diferenciar a escola é que, diferentemente da empresa em geral, ela lida com seres humanos, não com simples objetos. Essa alegação é lembrada mesmo por aqueles que querem fazer da escola mero negócio; embora o utilizem apenas para parecerem piedosos ou para serem simpáticos à causa oposta, já que eles mesmos não o levam muito a sério em suas decisões.

Essa justificativa tem seu fundo de verdade, mas não consegue dar conta da questão. Afinal, toda empresa lida necessariamente com seres humanos. A escola não é diferente de uma fábrica de parafusos, por exemplo, apenas porque nela se lida com seres humanos. A fábrica de parafusos também só funciona com seres humanos, muito embora explorados pelos proprietários do capital. Na verdade, esse argumento parcial parece fundamentar a ação dos que querem fazer da escola uma empresa como qualquer outra, devotando aos professores o mesmo desprezo que o capital dedica aos trabalhadores em geral.

Ao tentar aplicar na escola as cínicas técnicas de “relações humanas” aplicadas na empresa produtora de mercadorias, os modernos ideólogos da gestão empresarial ignoram completamente a especificidade do trabalho que se realiza na instituição educativa. Essa singularidade, que o verdadeiro educador nem sempre sabe exprimir, mas sente que é real em sua prática diária, advém do fato de que, na escola, não há apenas relações entre humanos, mas um tipo único de relação – a relação pedagógica –, pela qual o próprio humano é construído em sua configuração histórico-cultural.

Não se trata portanto de negar à escola sua condição de empresa, mas de afirmar seu caráter de educadora. Certamente isso não pode servir de desculpa para não lhe dar um tratamento técnico-administrativo, aplicando a melhor gestão na busca de seus objetivos; mas esse tratamento deve ser de acordo com sua especificidade pedagógica.

A dimensão educativa da escola é muito mais complexa e grandiosa do que o propalado. O trabalho pedagógico só tem condições de se realizar plenamente se for de fato livre, não se confundindo com o trabalho forçado da produção capitalista em que o salário é a razão necessária e suficiente. A vontade soberana do aluno e a vontade soberana do professor extrapolam a motivação meramente pecuniária e não se satisfazem com os mais sofisticados mecanismos administrativos de uma empresa qualquer.
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*Vitor Henrique Paro é mestre, doutor e livre-docente em Educação. Foi pesquisador sênior na Fundação Carlos Chagas e professor titular na PUC-SP. Atualmente é professor titular (aposentado) da Faculdade de Educação da USP, onde exerce pesquisa, docência e orientação em cursos de pós-graduação e coordena o Gepae – Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar. Publicou, entre outros, os livros Gestão democrática da escola pública (Editora Ática, 2000) e Gestão escolar, democracia e qualidade do ensino (Editora Ática, 2007).

DEZ RAZÕES PARA DIZER NÃO À REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

7 de novembro de 2012

O PREÇO DA SAÚDE

Por Hermann Hoffman – 01/11/12
http://pagina13.org.br

A saúde no Brasil é considerada um objeto valioso, uma mercadoria sem especificidades e um artigo de luxo que obedece silenciosamente a lógica do mercado, estando assim ao alcance de poucos que podem pagar por ela. A principal causa desta situação é o conflito histórico de dois projetos antagónicos: o público e o privado. O primeiro representa a gratuidade da doença pela falta de assistência cotidiana, já o segundo a venda da saúde como um ramo econômico rentável, suplemento do público e em continua ascensão no Brasil. Os tempos mudaram, se um dia alguém pensou que vender saúde era ser saudável, hoje não passa de práticas institucionalizadas com nota fiscal avalizada pelo poder público.

Neste caminho tortuoso e conturbado, o Estado – supermercado, dirigindo embriagado pela bebida privatizante travestida da solução, provoca os acidentes que poderiam ser evitados e não recebe punição, como diria a pesquisadora Ligia Bahia, “a seguir, trata-se de tentar vencer a corrida, sem olhar pra trás”. Dando continuidade as imprudências e na ânsia, como único que lhe resta, de dar assistência e esperança moral aos vilipendiados, o governo declama a célebre cantilena ministerial como verso: “o Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que optou pela construção de um sistema nacional universal público de saúde, o SUS”, contudo apenas basta dizer que a porta-estandarte  SUS, a Atenção Básica, não aguça para a universalidade e o sistema não se apaixona pelo público, elementos fatais quem rompem com todo o discurso de construção profética da universalidade, integralidade, equidade e participação social no Brasil.


Ante o quadro dramático da negligencia estatal na esfera da saúde pública, o saldo é negativo. Surgem mais feridos e mortos no campo de batalha Brasil, que para muitos gestores não úteis, são apenas números estadísticos invisíveis. Paulatinamente a triste realidade o sistema de saúde que eles dizem público e único vai colapsando, sendo este colapso nutriente fundamental para as entidades privadas de assistência amplificarem seus circuitos mercantis e o imponente complexo industrial da saúde de alta tecnologia, daí vem o pior, todo este desenvolvimento privado, em detrimento do público, é dependente da bagatela financeira que o Estado investe na compra de serviços e insumos.

Contrariando escancaradamente o projeto 100% público da construção do nosso sistema de saúde como única alternativa viável na efetivação de políticas sociais que assegurem os direitos constitucionais a assistência à saúde é que no Brasil a saúde tem um preço. A lógica do mercado capitalista está deformando o SUS com a concordância de um Estado ineficiente, burocrático, centralizador e cartorial. Por fim, perguntaram a um ex-ministro da saúde do Brasil por que é tão difícil conseguir dinheiro para a saúde? “Porque para isso nós precisaríamos atingir essas categorias que fazem parte da elite financeira e econômica do país e essas elites são que sustentam as campanhas políticas”. SUPLEMENTANDO o raciocínio, estas elites são as donas da rede privada do Brasil. Elas ditam o preço da saúde e ordenam o valor do voto.

LOGIAS E ANALOGIAS

No Brasil a medicina vai bem
Mas o doente ainda vai mal
Qual o segredo profundo
Desta ciência original?
É banal: certamente
Não é o paciente
Que acumula capital.

Antônio Carlos de Brito

*Hermann Hoffman, sergipano, acadêmico do 5° ano de Medicina. É presidente do Núcleo Internacional do PT e titular do Conselho de Cidadãos da Embaixada do Brasil em Cuba

27 de outubro de 2012

AS ALGAS VÃO ROLAR

EFRAIMRODRIGUES         
 
Estou no sertão. Aqui a Bahia encontra Sergipe que encontra Alagoas e Pernambuco. Neste epicentro do semiárido nordestino encontrei por acaso uma cena que nem choca mais; lançamento de esgoto in natura em rio (até mesmo no famoso São Francisco).
 
Será ainda em um futuro muito distante quando aproveitaremos a água e os nutrientes de nosso esgoto para fins mais nobres que poluir rios ? Talvez não.
 
Estes nutrientes e água que existem nas águas servidas, junto com o gás carbônico do ar, infelizmente abundante e a luz do sol são os ingredientes necessários para produzir toda sorte de carboidratos que as plantas produzem, como açucares e lipídeos.
 
Escolhendo o vegetal correto podemos produzir biodiesel, e se for um vegetal bem pequeno e simples, a eficiência neste processo será até centenas de vezes mais eficiente que, por exemplo, a soja.
 
A idéia não é um sonho distante. A cidade de Minneapolis já está com um projeto piloto de centrifugar o esgoto, produzindo um rico concentrado onde as algas fazem a festa. Posteriormente, o biodiesel é extraído das algas. De um lado sobra um concentrado de algas rico em nitrogênio e outros nutrientes para o solo e do outro o biodiesel. Boa parte da água que compõe o esgoto sai limpa já na centrifugação.
 
Em Recife, uma usina de álcool associada a um grupo austríaco está também usando algas para produção de álcool, estimuladas pelo gás carbônico que antes era lançado na atmosfera e que depois de captar a energia do sol, se transformará em álcool.  Esta unidade não irá utilizar esgoto.
 
O megainvestidor Vinod Khosla, ex CEO da Sun Microsystems diz que o custo disto tudo ainda está muito alto para tornar-se realidade, ao redor de 20 dólares por galão. Mas esta ainda é uma tecnologia bebê. Khosla já acertou muito, mas também já errou muito. Não há como saber, por exemplo, o que escondem as 300.000 espécies de algas que existem por aí, muito menos o que poderão fazer quando se inserirem nelas gens de outras espécies. Também há oportunidades na emissão de Co2 industrial, que é matéria prima para as algas. Serão necessários também estudos abrangentes de viabilidade econômica, que incluam todos outros benefícios além biocombustível.
 
Megainvestidores e gigantes usinas de álcool à parte, quando neste fim de semana eu voltar para minha aldeia (de onde vejo o mundo, como Fernando Pessoa), seguirei usando o esgoto tratado para irrigar as árvores frutíferas e transformar esgoto em laranja-lima, mexericas e limões. Ainda sem algas, mas também sem muitos problemas

26 de outubro de 2012

Como não enterrar sua árvore,

 artigo de Efraim Rodrigues

http://www.ecodebate.com.br


Plantar
Imagem: Shutterstock

 Espero que você ainda não tenha percebido que os colunistas falam sempre a mesma coisa. O Cony tem as guerras púnicas, o Antonio Prata tem a mulher dele e o Paulo Bricquet fala sobre sua Universidade. Sonhando em fazer parte desta lista, elegi meu assuntinho; plantar árvores. Continuarei com ele enquanto as pessoas acharem que seu trabalho se limita a dar uma enxadada na terra, enterrar a coitada lá e dar as costas.

No tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça bastava escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Com a globalização, ficou pouco. O livro tem que vender como o Paulo Coelho, o filho tem que ter educação bilíngüe e a árvore tem que crescer e dar frutos, e aí começa o problema.

É juízo pessoal, mas não vejo razão para cuidar de uma árvore por anos e não poder colher algo. Os flamboyants e sibipirunas que me desculpem, mas se você vai cuidar de uma árvore por anos, ela precisa produzir algo de útil, porque belas todas árvores são.

Os frutos não irão manchar o carro o ano todo. Sim, os vizinhos (especialmente os pequenos) irão roubar. Faz parte da brincadeira você não deixá-los perceber que plantou exatamente para isso, pareça bem bravo e o sabor daquela fruta vai ser tão maravilhoso que eles serão também plantadores de árvores logo que tiverem tamanho para isso.

Nem olhe para estas mudinhas abandonadas que dão para as crianças em feiras da primavera. A história delas é muito triste, mas dar para elas seu nobre e escasso espaço não irá salvá-las. As mudas que se distribuem a esmo são sempre o resto dos viveiros: doentes e desnutridas.

Um bom começo para esta longa relação é partir dos gostos de ambas partes. Escolha, entre aqueles frutos que você gosta, aqueles com condições de crescer em sua região e no local. Abacateiros são grandes árvores.

Há mangueiras grandes e pequenas. Não há desculpa para não dar um Google e evitar investir anos em uma barca furada. Para os teimosos, há sempre a alternativa de plantar qualquer coisa e daqui a dez anos cortar e plantar outra. Quem sabe daqui a 50 anos você tenha acertado.

Talvez.

Se você quer que a sua árvore cresça, abra uma cova onde entre o seu braço, não a sua mão, e quanto pior a terra, maior a cova. Você não precisa abrir a cova de uma vez. Abra em dois ou três dias.

O melhor adubo de todos está no lixo da cozinha. Vá jogando tudo na cova uns dois meses antes e no plantio você deve ter um material escuro no fundo esperando a terra e a muda.

Até a próxima coluna sobre plantio de árvores (em breve).

Efraim Rodrigues, Ph.D. (efraim@efraim.com.br), Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor pela Universidade de Harvard, Professor Associado de Recursos Naturais da Universidade Estadual de Londrina, consultor do programa FODEPAL da FAO-ONU, autor dos livros Biologia da Conservação e Histórias Impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores. Também ajuda escolas do Vale do Paraíba-SP, Brasília-DF, Curitiba e Londrina-PR a transformar lixo de cozinha em adubo orgânico e a coletar água da chuva. É professor visitante da UFPR, PUC-PR, UNEB – Paulo Afonso e Duke – EUA.
http://ambienteporinteiro-efraim.blogspot.com/

25 de outubro de 2012

A questão do inimigo principal


Por Wladimir Pomar

A direita costuma divulgar com prazer as eternas divergências e divisões na esquerda, embora ela própria esteja sempre envolvida em disputas e divisões ferozes. Mas há diferenças na natureza das divisões que ocorrem na direita e na esquerda.

A direita, como representante política da burguesia, disputa por interesses econômicos, por nichos de mercado, pela hegemonia sobre o conjunto da burguesia, pelo deslocamento e aniquilamento de concorrentes. Seus setores mais reacionários brigam com os demais contra qualquer tipo de concessão aos trabalhadores e às camadas populares. E, em geral, se voltam contra as vacilações de alguns setores que acham necessário levar a sério o liberalismo democrático. Embora quase sempre consigam se unir na defesa dos interesses pétreos da burguesia, a propriedade privada e o direito ao lucro, no mais suas disputas muitas vezes chegam às raias da selvageria.

A esquerda se divide porque os próprios trabalhadores e as camadas populares não conseguem se furtar de competir entre si no mercado de trabalho. Alguns setores buscam conquistar de concessões ou benefícios particulares, mesmo que isso prejudique à classe como um todo, como é o caso dos que aceitam salários menores. Também há muitas divergências sobre as formas de luta que devem utilizar para enfrentar a burguesia. E, em geral, os trabalhadores e demais camadas populares não têm claros seus objetivos de libertação. Uma parte considerável deles supõe até que essa libertação pode ocorrer através do acesso à propriedade privada e ao lucro. O que, de cara, faz com que se criem diferentes correntes de representação ideológica e política, com objetivos gerais nem sempre idênticos, criando dificuldades a qualquer processo de unificação e cooperação, e resultando em disputas nem sempre civilizadas.

Nesse sentido, a burguesia tem uma enorme vantagem. Seu único objetivo consiste em manter a propriedade privada e seus lucros. A disputa dentro dela gira em torno desse objetivo, mesmo que isso tenha em vista ampliar o capital à custa de outros setores da própria burguesia. Além disso, cada setor da burguesia tem recursos para empregar enormes grupos de ideólogos de todos os tipos, relacionados com a economia, sociologia e outras ciências sociais, cuja tarefa consiste em municiar cada grupo burguês, e seus representantes políticos e partidários, de argumentos justificadores daquele objetivo geral e, em complemento, dos objetivos particulares do grupo.

No caso da esquerda, há muito ela se debate entre vários objetivos, mesmo quando fala em socialismo. Além disso, sem entender o capitalismo, nem a burguesia, ela tem tido dificuldades para descobrir, em cada momento histórico, quais as ideologias e representações políticas burguesas que, conjunturalmente, devem ser tomadas como inimigas principais, dividindo-se perigosamente em torno disso e, não raramente, tomando a outra parte da divisão como a verdadeira inimiga.

Um dos exemplos históricos mais trágicos dessa situação ocorreu no período da primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918, quando os trabalhadores das potências capitalistas, ao invés de se unirem para evitar a guerra ou transformá-la em revolução, como propusera a Internacional Socialista, apoiaram as burguesias de seus próprios países e se mataram mutuamente nos campos de batalha. Algo da mesma natureza ocorreu logo após a revolução russa de 1917, quando os socialistas revolucionários, por divergências com os comunistas sobre o caminho a seguir, tentaram matar Lenin, deixando-o com sequelas que o levaram à morte prematuramente. Outro exemplo histórico de consequências nefastas pode ser encontrado na disputa entre os socialdemocratas e os comunistas na Alemanha dos anos 1930, que permitiu a ascensão do nazismo.

Em todos os casos, a questão central, que levou as divergências a terem resultados devastadores para a esquerda como um todo, foi a divergência em torno do inimigo principal. Na guerra de 1914-18, os trabalhadores e os partidos socialdemocratas tomaram as nações como inimigos principais, ao invés de suas próprias burguesias, esquecendo-se de que iriam lutar, na suposta nação inimiga, contra trabalhadores e outros partidos socialdemocratas e de esquerda. No caso do atentado a Lenin, os socialistas revolucionários fizeram o trabalho que os agentes do tzarismo pretendiam fazer, e não haviam conseguido. Na Alemanha dos anos 1930, os comunistas consideravam os socialdemocratas seus principais inimigos, e estes achavam o mesmo dos comunistas, quando o verdadeiro inimigo a ser combatido naquele momento era o nazismo.

Há inúmeros outros exemplos idênticos na experiência histórica da esquerda, em todos os países, inclusive no Brasil. Aqui, por exemplo, antes do golpe militar de 1964, embora houvesse evidências de que ele estava sendo armado pela direita, várias correntes de esquerda consideravam o governo Jango o inimigo principal. Mesmo durante a ditadura militar, foram comuns as divisões internas nos grupos de esquerda, muitas vezes considerando-se como inimigos, ao invés de unificar-se na luta contra a ditadura.

Na atualidade, ainda persistem tendências desse tipo em alguns setores da esquerda. Para alguns, o governo Lula e, agora, o governo Dilma, são os inimigos principais, esquecendo-se não só que a direita burguesa, representante dos setores financeiros e monopolistas, está concentrada no PSDB e no DEM, mas também que são esses partidos que expressam a política de retomada do neoliberalismo no Brasil.

É evidente que outros agrupamentos de esquerda, que apoiaram o governo Lula e apoiam o governo Dilma, em sentido contrário, enxergam no PSDB e DEM possíveis aliados e tomam outros setores de esquerda como inimigos principais. Todos dão uma demonstração clara de que não aprenderam com a experiência histórica. O pior de tudo é que as teorias e o estudo dessas experiências históricas a respeito parecem pouco valer para mudar essa situação.

Foi a dura derrota contra o regime ditatorial militar, e a ascensão das lutas operárias, que levaram grande parte das esquerdas revolucionárias– não todas – a se unificarem no Partido dos Trabalhadores, nos anos 1980. De lá para cá, as mudanças nas forças políticas e nos inimigos têm levado a novas divisões na esquerda, sempre tendo como centro o inimigo principal. Nessas condições, talvez seja necessário que as correntes de esquerda tenham que passar novamente pela prática de quebrar a cabeça para definir contra quem realmente devemos lutar

23 de outubro de 2012

Sentença política e “paz política”: o julgamento que não terminará

Quero encerrar a minha série de artigos, sobre o processo do “mensalão”, defendendo uma tese que não será simpática para os que, através de um olhar apressado - baseados no princípio da solidariedade com quem “está sendo condenado sem provas” (o que parece ser certo em alguns casos) - gostariam que se dissesse, rapidamente, que o processo redundou num resultado, tanto “ilegal” como “ilegítimo”. Entendo que isso seria uma solidariedade, além de ineficaz, jurídica e politicamente incorreta.

Sustento que o processo foi “devido” e “legal”. E o seu resultado não está manchado de ilegitimidade: os procedimentos garantiram a ampla defesa dos réus e, embora se possa discordar da apreciação das provas e da doutrina penal abraçada pelo relator (“domínio funcional dos fatos”), a publicidade do julgamento, a ausência de coerção insuportável sobre os Juízes - inclusive levando em conta que boa parte deles foi nomeada pelo próprio Presidente Lula - dão suficiente suporte de legitimidade à decisão da Suprema Corte.

Entendo que todo o Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores. Isso é parte de sua engenharia institucional e do processo político que caracteriza as suas funções. Nas decisões das suas Cortes, às vezes predomina o Direito, às vezes predomina a Política. O patamar da sua decisão legitíma - importante nos regimes de democracia política ampla - é alcançado, então, não somente através das suas instâncias jurídicas de decisão, mas - nos seus casos mais relevantes- na esfera da política, por dentro e por fora dos Tribunais.

Kelsen diria que a função de todo o Tribunal Constitucional é, em última instância, “garantir a paz política no interior do Estado.” Marx, se pudesse corrigir Kelsen, provavelmente acrescentasse: “para manter as relações de dominação e controle reguladas nas instâncias formais do Direito.” Eu diria, se tivesse alguma estatura para ombrear com estes dois gigantes: “ambos tem razão”. No período atual, juristas eminentes como Luigi Ferrajoli sustentam que a globalização também já é uma crise do direito em duplo sentido: um, objetivo e institucional, e outro, subjetivo e cultural, o que implica conceber que as Cortes superiores, na esteira do aprofundamento desta grave crise do Direito, poderão aumentar a sua autonomia para julgar acima das leis.

Esta função política do Tribunal Constitucional no Estado de Direito é cumprida em qualquer Estado Democrático. Não a partir do Direito como instância “pura” de caráter jurisdicional, mas através das influências ideológicas e culturais, que refletem nas Cortes Supremas. Estas influências se originam, principalmente, dos indivíduos e grupos organizados que dominam os espaços de controle e formação da opinião, onde a política esteriliza o Direito: a mídia, os aparatos culturais, dentro e fora do Estado, os partidos, os centros de produção do pensamento e da cultura. Isso ocorre não somente em julgamentos de quadros políticos da sociedade civil ou de Estado, mas em todos os julgamentos em que a disputa se dá - como juízo de fundo- sobre qual o projeto social e político que caracteriza o caso que está sendo julgado no tribunal.

Algumas vezes, as demandas que versam sobre direitos que estão nas instituições libertárias do Direito Constitucional moderno “ganham”: a constitucionalidade das cotas para negros e a constitucionalidade do Prouni, por exemplo; outras vezes – na minha opinião na maioria das vezes- quando se julga um caso que refletirá um juízo sobre conflitos de um período inteiro (por exemplo a capacidade da elite política neoliberal dar uma saída para a miséria e o desemprego), as decisões tendem a ser “estruturantes” da reação conservadora.

E isso não é feito porque os Juizes são mal intencionados ou, necessariamente, reacionários. São os mesmo Juizes que potencializaram direitos importantes em julgamentos históricos, como no caso “Raposa Serra do Sol”. A conservação das diferenças de “status” social e político - no regime do capital - é, também, uma das funções mais importantes do Estado Democrático de Direito. Este Estado tanto deve absorver conquistas como manter as diferenças dentro de certos limites, que são da natureza do regime do capital.

As diferenças a serem preservadas, porém, não se esgotam nas diferenças de classe, que naturalmente existem no capitalismo. São, também, as diferenças no tratamento que o Poder Judiciário necessariamente dá às distintas correntes ideológicas e de opinião. Foi esta a carga cultural que se apresentou na mídia de maneira uniforme sobre o Supremo. No caso, travestida de “luta contra a corrupção” e que, certamente, teve um impacto brutal na cabeça de cada Juiz do Supremo.

Perceba-se que, num ponto, ocorreu um empate estratégico: nem a mídia conseguiu mobilizar apoios de massas, para a condenação que ela já tinha feito, nem o PT conseguiu - sequer pretendeu - mobilizar bases sociais para pressionar legítima e legalmente o STF, por um “julgamento justo”. O que, por si só, indica que sabíamos que as nossas bases desconfiavam que algumas contas deveriam ser ajustadas.

No caso concreto do mensalão, como em tantos outros, não se trata de uma divisão linear ou de alinhamento automático a partir de classes sociais, nas distintas posições políticas sobre o julgamento, trata-se de um juízo dividido sobre a vida presente: as políticas do governo Lula, a “ralé” melhorando a vida dos pobres, os sindicalistas e intelectuais de esquerda “mandando” milhões de pessoas para fora da miséria; os negros pobres e os pobres do campo chegando nas Universidades, nas escolas técnicas federais, a Presidenta enfrentando a “sanha dos bancos”. Ou seja, uma pequena cobertura “real”, que o cheque com poucos fundos da democracia “formal” jamais ofereceu para a maioria do povo brasileiro.

No caso do “mensalão”, os foros de legitimação do julgamento foram amplos e não foram feitos somente pela mídia: a extrema esquerda corporativa se uniu, de maneira siamesa, ao “conglomerado” demo-tucano. Não somente apresentando candidatos “contra os políticos”, mas também fiéis escudeiros do moralismo udenista, promovido pela grande mídia. Perfilaram o lado dos “puros” contra os “políticos impuros”: o neoliberalismo, como utopia da direita, abraçou-se ao economicismo adjetivado de impropérios esquerdistas, para atacar um projeto político que vem resgatando da miséria milhões de brasileiros.

Os delitos que os réus cometeram - ou não cometeram - foram secundarizados neste processo do “mensalão”. Mas, o “lado” que os réus estiveram no processo político recente este, sim, foi muito importante e precisava ser vulnerabilizado. Tratava-se - como foi repetido exaustivamente em horário nobre - de “um esquema do PT para se eternizar no poder”.

As provas dos crimes se tornaram, assim, secundárias e o processo judicial poderá legar - num desserviço político à democracia - ao invés de condenados por crimes provados, “mártires” do ataque aos princípios “garantistas”. Alguns foram condenados, não pelos crimes provados, mas por suposições enquadradas (de fato) como “crimes políticos” para comprar reformas”.

O Estado Democrático de Direito não foi organizado para ser perfeitamente “justo”, mas o foi para ser adequado a um período histórico democrático do desenvolvimento capitalista, com desigualdades. E, muito menos, foi produzido para “revogar” o controle do capital sobre a vida pública e privada. Nem tiveram esta pretensão os seus constituintes. O que o Estado de Direito reflete, em geral, é o encravamento de conquistas do mundo do trabalho, do iluminismo democrático e das lutas libertárias da inteligência socialista mundial, no cerne do Estado.

Esta sua virtude é, todavia, uma finalidade secundária da sua organização jurídica, embora ela seja real e importante. A sua finalidade principal é manter, com um mínimo de coesão social, as desigualdades num nível em que as demandas de igualdade real não ameacem o desenvolvimento do capitalismo.

Da nossa parte - da esquerda em geral e do PT - não podemos esquecer que é preciso não só discutir os efeitos políticos do julgamento, mas também as condições institucionais e políticas, que abriram espaços para os nossos erros. Isso significa privilegiar duas lutas de fundo, sem as quais tudo poderá acontecer de novo: financiamento público das campanhas, para reduzir a influência das empresas no comportamento dos políticos e verticalidade das alianças, para formar partidos fortes, que possam se libertar das alianças sem princípios no Estado. Estas reformas sim ajudarão a melhorar todo o espectro político do país e, especialmente, ajudarão a viabilizar uma atuação mais autêntica da esquerda no palco da democracia e no cenário da Revolução Democrática.

(*) Governador do Estado do Rio Grande do Sul