artigo de Montserrat Martins
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Os habitantes da Capitania do Rio Grande…tinham títulos de nobreza, léguas de sesmaria…falavam alto e grosso, de cabeça erguida… os sem título e sem terras falavam alto e grosso e de cabeça erguida porque tinham armas, botas e cavalos. Mas os gaúchos sem cavalo, sem armas, sem botas, sem nada… esses só falavam alto e grosso entre os da sua igualha. Porque ante os bem montados ficavam de olhos baixos e sem voz. De seu às vezes nem um nome tinham. Donde vinham? Ninguém sabia ao certo nem procurava saber.” (O Continente, Érico Veríssimo)
Há algo de universal e de específico em cada povo, as hierarquias de classes não são originais, mas sim os modos como elas se expressam, nos cavalos, nas botas, nas facas. Não foi só aqui que forjamos um povo à base de guerras, elas são crônicas em inúmeras regiões do planeta, mas os modelos culturais sobre os quais elas se cronificaram, sim. Muito antes da “síndrome de Gre-Nal”, de ser radicalmente “PT ou anti-PT” e todas as dicotomias simplistas atuais, os gaúchos já se dividiam entre maragatos ou pica-paus, numa das guerras mais sangrentas da história do país.
Raízes geram códigos (linguagens verbais e gestuais), modos de se expressar que só são compreensíveis para os habitantes locais de cada região, que conhecem sua história e seus significados. “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho”. O “ditado” na voz de um certo capitão Rodrigo Cambará, que é desafiado por Juvenal Terra “Pois dê!”, é a imagem perfeita do orgulho gaúcho, da disputa pela supremacia local com demonstrações de valentia, “não sou de briga, mas não costumo aguentar desaforo”. O enfrentamento iminente é driblado com doses de racionalidade, “estou cansado de pelear, guarde a arma amigo, eu não quis ofender ninguém, foi uma forma de falar”.
“O Continente” é mais que um retrato histórico das nossas raízes, é também uma metáfora perfeita da nossa identidade, da “alma” gaúcha que se formou com o tempo e o vento, atravessando os séculos para ser forjada exatamente no modo como é hoje, para o bem e para o mal. Nossas virtudes e defeitos tem as mesmas raízes, as dicotomias e o espírito oposicionista constante. É como já declarou o capitão Rodrigo, um certo “alter ego” de todos nós: “Eu sempre digo, se é contra o governo podem contar comigo. Mesmo que o governo tenha razão, isso não tem a ver com o caso. Governo é governo e sempre é divertido ser contra”.
Peleamos mesmo que em palavras, vício à la Rodrigo: “Vosmecê já viu um peixe fora d’água? Na paz me sinto meio sem jeito”. Gaúchos radicados em outros estados se dão conta dessa nossa irracionalidade, mas também sentem falta das boas discussões. No Rio, em contraste, as conversas costumam ser sedutoras ou jocosas, mas geralmente evitando conflitos mais profundos. Lá o mote não é ser valente, é ser esperto. Leia, releia, presenteie com “O Continente” nesse fim de ano. É nosso espelho.
Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
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