13 de novembro de 2011

Filhos de Cam, filhos do Cão
Mário Maestri*

Marco Feliciano, do PSC paulista, propôs em sua página no Twitter que os africanos descenderiam de “ancestral amaldiçoado por Noé”, conhecendo por isso a África Negra a “maldição do paganismo, o ocultismo, doenças”, como a aids.

A sina terrível que pesaria sobre os afrodescendentes nasceria do primeiro ato de “homossexualismo da história”, praticado por um filho de Noé. Para o deputado federal, pastor e empresário, tais sandices não seriam racismo ou homofobia, mas teologia pura. Suas afirmações desvairadas constituem apoio às declarações do deputado Jair Bolsonaro, que motivaram repúdio nacional.

Na Antiguidade, a escravidão justificou-se, sobretudo, pela lei do mais forte. Mais tarde, Aristóteles inovaria propondo a inferioridade do “escravo” e servidão natural. Na retomada da instituição terrível, quando da luta pela Ibéria, cristãos e muçulmanos escravizaram-se mutuamente, por negarem, uns e outros, a verdadeira fé!

A rejeição da palavra divina mostrou-se justificativa perneta quando os portugueses passaram a levar para Portugal, em 1444, os primeiros cativos negro-africanos. Eles não eram infiéis, pois não negavam a doutrina reta, que desconheciam! No esforço português de racionalização da escravidão negra, muitas justificativas foram abandonadas por serem pouco funcionais. Entre elas, a maldição que pesaria sobre os negro-africanos, por descenderem de Cam. Uma história velha como o Dilúvio!
Conta a legenda bíblica que, após pousar a arca em terra seca, Noé e seus três filhos, Sam, Cam e Jafet, ocuparam o mundo purificado. Ao frutificar a terra, o patriarca cultivou as vinhas e descobriu o vinho. Ao beber o inebriante líquido, protagonizou o primeiro pileque da história, despindo-se “completamente dentro de sua tenda”.

Nesse ponto, divergem as versões bíblicas. As mais amenas, propõem que Cam viu o progenitor nu e contou aos irmãos. As mais infamantes, que fez muito mais com o progenitor desprotegido! Ao recuperar-se da esbórnia, Noé amaldiçoara a Canaã, filho de Cam, que nada fizera, mas responsável pelo pecado do pai, na visão da época. Eles e seus descendentes seriam doravante “escravos” dos tios e de seus descendentes.
Você concorda que a história bíblica está sendo usada para justificar o racismo?
Em meados do século 15, na célebre Crónica de Guiné, Eanes de Zurara registrou as primeiras capturas de negro-africanos nas costas da África e as tentativas moral-religiosas de justificá-las. O que não foi fácil, os africanos nada haviam feito contra os europeus, não motivando, portanto, sequer uma “guerra justa”.

O cronista real refere-se à predestinação bíblica ao cativeiro. Acreditava que os “negros” seriam já escravos dos “mouros”, “por causa da maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual o maldisse, que sua geração fosse sujeita [escrava] a todas outras do mundo”.

Sem muito convencimento, lembrava partilharem daquela interpretação o arcebispo dom Rodrigo, de Toledo, “Sosepho, no livro das Antiguidades dos Judeus”, “Gualtero” e “outros autores que falaram das gerações de Noé depois do saimento da arca”. A maldição justificaria o tratamento como cães, dos descendentes de Cam.
A explicação bíblica da escravidão negro-africana foi abandonada pelos primeiros ideólogos portugueses e europeus, por não haver no livro sagrado qualquer ligação entre os filhos de Cam e os negro-africanos.
Ao contrário, a ciência registra que as formas primordiais da espécie humana são velhas de 4 milhões ou mais de anos – não tendo a história da humanidade os 6 mil e pico anos sugeridos pela Bíblia. Propõe também a origem unitária do gênero humano, tendo como berço o Continente Negro. Para horror dos racistas orgulhosos e envergonhados, somos todos irmãos e africanos!
*Historiador e professor do PPG de História da UPF

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