O Brasil e a escravidão mercantil: nossa dívida com a África
Após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização de africanos após esta data, o Brasil permitiu a continuidade do tráfico por navios negreiros portando bandeira brasileira e o desembarque e escravização de 760 mil africanos, e assegurou a impunidade de traficantes e senhores de escravos durante décadas, que continuaram a subjugar ilegalmente gerações de escravos até 1888. Esta impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até hoje. O artigo é de Luiz Carlos Fabbri e Matilde Ribeiro.
Luiz Carlos Fabbri e Matilde Ribeiro/Carta Maior
Luiz Carlos Fabbri e Matilde Ribeiro/Carta Maior
1. O escravismo na formação do Brasil
O presente artigo tem por objetivo chamar a atenção sobre a atualidade política do regime escravista no Brasil e sobre a responsabilidade histórica do Estado brasileiro no tráfico transatlântico de escravos e na escravização de africanos ao arrepio da lei durante o Império. Com efeito, após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização de africanos após esta data, o Brasil independente permitiu a continuidade do tráfico por navios negreiros portando bandeira brasileira e o desembarque e escravização de 760 mil africanos, segundo a estimativa de Alencastro (2010), e assegurou a impunidade de traficantes e senhores de escravos durante décadas, que continuaram a subjugar ilegalmente gerações de escravos até 1888.
Esta impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até os dias atuais. Assim como a ―invisibilidade‖ dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece grandemente ignorada até o presente. Nesses tempos em que se reconhece e se discute o direito à memória e à verdade acerca das violações de direitos humanos nos períodos ditatoriais recentes, a nação brasileira precisa tornar-se ciente de que o tráfico abjeto e o regime escravista foram em larga medida obra de nossos conterrâneos.
Hoje, esse salto evolutivo em nossa memória histórica é não somente necessário, mas emergente, graças à amplitude e lucidez da nova política africana desencadeada pelo Governo Lula, o ―mais africano dos presidentes, no dizer do ex-Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. No ano de 2011, comemoram-se dez anos da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, que teve lugar em Durban, na nova África do Sul, em agosto/setembro de 2001.
Em sua memorável resolução final, a Conferência reconheceu ―que a escravidão e o tráfico de escravos, incluindo o tráfico transatlântico de escravos, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas‖; reconheceu ainda que ―a escravidão e o tráfico de escravos são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico transatlântico de escravos, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata...
Durban foi um marco que galvanizou em todo mundo novos entendimentos e posturas, bem como movimentos sociais e políticas públicas sobre a problemática racial, particularmente com respeito aos afrodescendentes, como bem o ilustra, a declaração de 2011 como o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes, em 2011 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Tudo isso é imensamente relevante em nosso país. Com efeito, segundo projeções do IPEA, devido à diferença nas taxas de fecundidade entre população branca e não branca, projeta-se para 2050 que ¾ da população brasileira estará constituída por negros e pardos. O Brasil, este povo majoritariamente afrodescendente, tem o direito de conhecer toda a verdade sobre sua história. Ao fazê-lo, deverá reconhecer sua dívida com respeito à África, independentemente do colonialismo europeu, do qual os dois continentes foram vítimas, mas devido à participação direta do Estado brasileiro, pós-Independência, na pilhagem da África.
2. A longa abolição da escravatura
Como é sabido, o Brasil foi o último país das Américas a libertar efetivamente seus escravos. No entanto, após a firma do tratado anglo-brasileiro de 1826, em troca do reconhecimento pelo Reino Unido da independência do Brasil, havia sido aprovada pela Câmara de Deputados do Império e promulgada em 1831, durante a Regência, uma lei que abolia o tráfico de escravos e criminalizava a escravização de africanos desembarcados no Brasil.
Apesar desta lei, que está na origem de expressão popular ―para inglês ver, os chamados negreiros brasileiros prosseguiram com o tráfico, servindo-se de uma rede de agentes instalados ao longo de toda a costa ocidental da África. Na verdade, com a abolição do trabalho escravo nos Estados Unidos, após a guerra da independência, o tráfico negreiro brasileiro ganhou inclusive um novo impulso, sem a concorrência de seus congêneres do norte.
Além do tráfico, a lei de 1831 proibia a própria escravização, não somente assegurando plena liberdade aos africanos introduzidos no país após esta data como considerando seqüestradores seus eventuais proprietários, sujeitos a sanções penais. Por reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade, o Código em vigor à época impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano seqüestrado para qualquer porto da África.
Pouco depois, em 1845, o governo britânico decretou o Bill Aberdeen, que proibia o tráfico de escravos entre a Europa e as Américas e autorizava a Marinha a aprisionar navios negreiros, mesmo, no caso, quando navegassem em águas territoriais brasileiras, provocando pânico, segundo se diz, em traficantes e proprietários de escravos e de terras no Brasil. Para a Grã Bretanha, potência hegemônica no período, o tráfico tinha deixado de ser rentável, tornando-se um obstáculo às suas necessidades de expansão imperialista e de conquista de novos mercados, embora suas reais motivações se ocultassem sob o véu de razões filosóficas e humanitárias.
Apesar do forte sentimento anti-britânico gerado na alta sociedade imperial, o governo brasileiro viu-se obrigado a aprovar uma nova lei em 1850, dita lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico transatlântico para o Brasil e autorizava a apreensão dos negros ― boçais, que assim chamavam aos escravos recém-chegados que não dominavam o português. Mas, em contrapartida, a lei ignorava os escravos que haviam chegado ao país desde o tratado de 1826 e a lei de 1831, concedendo, de certa forma, um indulto aos seus infratores.
Com este gesto inaugural de impunidade, que viria a se incrustar a posteriori na sociedade brasileira, o governo brasileiro ―anistiava, a partir de 1850, os culpados pelo crime de seqüestro de africanos, fazendo vistas grossas ao crime correlato de escravização de pessoas livres. Com isso, os quase 800 mil africanos desembarcados até 1856 — e a totalidade de seus descendentes — continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888, ao mesmo tempo em que aumentava o tráfico interno em direção ao Sudeste e ao Sul, que ganhavam novo dinamismo econômico em detrimento do Nordeste. Assim, boa parte das últimas gerações de seres humanos escravizados no Brasil não era escrava de jure.
Ou seja, o tráfico de escravos e a escravização de africanos durante o Império não eram somente condenáveis no plano ético: eram atos ilegais cometidos pelas elites brasileiras, que permaneceram ocultos e impunes nas dobras da história dos vencedores. Paralelamente, a elevada concentração fundiária ganhava por esta via uma sobrevida e se consolidava, ao mesmo tempo em que se reforçavam os fundamentos da desigualdade racial no Brasil.
3. O Brasil e o tráfico negreiro
O tráfico negreiro com destino ao Brasil sempre teve uma dinâmica própria. Já desde o século XVII, era gerido a partir de portos brasileiros, isto é, os grandes traficantes que garantiam a reprodução do sistema escravista no país estavam sediados em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, e não em Lisboa. A partir de 1831, o tráfico passou integralmente ao controle de traficantes brasileiros e seus agentes em portos da África Ocidental. Os escravos eram trazidos da África, acorrentados em navios negreiros, com a bandeira brasileira hasteada em seus mastros, causando profunda dor em patriotas como Castro Alves, que em seu poema Navio Negreiro, de 1868, dezoito anos após a lei Euzébio de Queiroz, bradava enfurecido:
“Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia? Silêncio. Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!...”
No Império, os traficantes brasileiros eram considerados empresários de sucesso e possuíam um status social elevado, armando embarcações com destino à África, servindo-se de uma rede de fornecedores e agentes comerciais em vários países e empregando muitas pessoas. Até 1831 estiveram entre os homens mais ricos do Império, com ligações estreitas com a Corte e representantes na Câmara de Deputados, além de contar com a conivência da polícia e das autoridades locais.
Somente após 1850, com a Lei Euzébio de Queiroz, eles começaram a ser qualificados como ―piratas, tendo muitas vezes que fugir para o exterior. No entanto, sob a proteção dos latifundiários, que como compradores de escravos jamais foram punidos, foram autorizados a voltar a viver no país já nos anos 1860 e incentivados a aplicar suas fortunas em outros negócios, como a agricultura. De certa forma, portanto, a participação de brasileiros no tráfico negreiro e as benesses que receberam fazem parte de um processo que ajudou a plasmar as elites brasileiras nas entranhas da sociedade escravocrata brasileira.
Segundo Alencastro, ―do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de cinco milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). Somente após 1808, com a chegada da família real ao Brasil, teriam desembarcado mais de 1,4 milhões de escravos, aproximadamente ⅓ do total de africanos escravizados que aportaram em terras brasileiras.
Grande parte da decantada prosperidade econômica do Brasil imperial se baseou nesses enormes contingentes de escravos desembarcados durante o século XIX. Para citar um único exemplo, à persistência da escravatura se deveu o arranque da cafeicultura no Vale do Ribeira em São Paulo, que converteu o Brasil no maior produtor mundial do produto e viabilizou ulteriormente a industrialização do país.
O tráfico negreiro e o trabalho escravo no Brasil contribuíram poderosamente para a acumulação mundial de capital e a expansão econômica européia, tornando rentável a colonização da África. Em contrapartida, a África ficou estagnada, com grande parte de sua população dizimada ou deportada e com suas sociedades desestruturadas, ao mesmo em que se acentuavam os conflitos internos e as migrações massivas.
O caso de Luanda, bem documentado, ilustra as mudanças provocadas pelo tráfico nas sociedades africanas. De 1770 a 1840, seu porto permaneceu como o mais importante exportador de escravos da África Ocidental, mantendo-se nesta posição com respeito ao Brasil, mesmo após a primeira lei de abolição em 1831. Ao longo deste período, a população não só declinou fortemente como sofreu perdas significativas em sua mão de obra produtiva, para atender à demanda brasileira. Este processo, no entanto, jamais ocorreu sem resistências, sendo freqüentes as fugas e revoltas de grupos de população vulnerável para o interior e a criação em meados do século XIX de ―quilombos ou ―motolos, que costumavam se armar e atacar a cidade de Luanda.
Esta rapina abjeta de seres humanos reduziu o potencial de desenvolvimento e maculou o ethos civilizatório do qual a África era portadora. Visto da perspectiva do continente africano, o tráfico de escravos não foi, portanto, uma empresa exclusiva de colonizadores europeus, mas também, e diretamente, de traficantes brasileiros atuando com o beneplácito do Estado brasileiro, quando o país já havia se tornado independente.
4. A dimensão política de nossa dívida com a África
Quando falamos da dívida brasileira com respeito à África, não devemos restringi-la ao incomensurável aporte dos africanos à construção da nação brasileira ou, muito menos, igualar o Brasil à potência colonizadora. A colonização africana resultou do expansionismo europeu e, desta perspectiva, tanto Brasil como África padecemos solidariamente dos seus males. Mais precisamente: o Brasil não colonizou a África e nós não temos porque assumir uma responsabilidade histórica que não nos cabe diretamente.
A verdadeira dívida brasileira está espelhada no tráfico negreiro realizado por traficantes brasileiros, principalmente ao longo do Império, atuando ilegal e impunemente, sob a égide do Estado brasileiro, ou seja, refere-se a um período histórico de pouco mais de meio século, num contexto em que o Brasil e outros países do continente americano já haviam deixado de ser colônias, tornando-se independentes.
Com efeito, foram traficantes brasileiros, em associação com grandes latifundiários, ou seja, as elites econômicas imperiais, que tomaram as rédeas do tráfico para o Brasil. Embora o país tenha evoluído desde então, os herdeiros dessas elites, e em alguns casos inclusive seus descendentes diretos, continuam tendo um enorme peso na vida política e na economia do país. A atualidade do tráfico negreiro reside, contudo, mais além das chagas sociais que nos legou, no desafio que nos coloca sobre o imperativo de ampliar continuamente nossos horizontes democráticos e construir uma sociedade que respeite a dignidade humana.
A discriminação e o racismo contra o negro no Brasil têm na escravatura sua matriz principal e fundadora. O tráfico necessitava uma justificativa no plano ideológico, que reduzisse o "homem de cor" a um ser inferior, degradado, próprio a ser tratado como uma coisa, uma mercadoria. O racismo cresceu à medida que se expandiu o tráfico negreiro e se incrustou nas instituições brasileiras principalmente a partir do Império. Mesmo depois de abolida a escravidão, o racismo prosseguiu e prosperou, como parte de uma cultura dominante abraçada pelo Brasil independente, a mesma que tornou possível e aceitável o saque colonial, o imperialismo e, nos dias atuais, o neocolonialismo. No caso do Brasil, esta cultura ainda dominante se traduz na submissão, com freqüência servil, aos interesses das classes dominantes do mundo dito civilizado.
O governo Lula inaugurou uma reviravolta nesta triste herança histórica, ao assumir a dívida histórica do Brasil com respeito à África, e ao reafirmar, a um só tempo, o peso da África e dos afrodescendentes na formação social brasileira. Contrariando as pretensões primeiro-mundistas das elites tradicionais, pediu publicamente perdão aos africanos e fez da África uma prioridade para a nova inserção internacional do Brasil, mediante uma visão de largo prazo dos interesses nacionais. Conferiu assim uma nova legitimidade e um cunho popular à política externa brasileira, valorizando o componente africano de nossa sociedade e a sua contribuição decisiva para a afirmação da nossa cultura. Para a África, o Brasil de governo Lula tornou-se um poderoso aliado na conquista de maior autonomia e integração, ajudando-a a superar a situação de dependência e marginalização em que se encontra.
No plano interno, contudo, nesses tempos em que se discute o direito à verdade e à memória na perspectiva dos oprimidos, cabe ainda desvendar o quanto a forma que assumiu o escravismo no Brasil determinou seu desenvolvimento ulterior e, em particular, porque o Brasil permanece até hoje como a única grande economia agro-exportadora que não realizou uma extensa reforma agrária.
O ocultamento da verdade com respeito ao papel de brasileiros no tráfico negreiro contribui também, certamente, à perpetuação do trabalho escravo no Brasil até o presente, esse crime de lesa-humanidade, considerado imprescritível pela Constituição de 1988.
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, de 1995 até agosto de 2010, foram resgatados quase 38 mil escravos. Por sua vez, a Comissão Pastoral da Terra estima que cerca de 25 mil brasileiros se tornam escravos a cada ano, passando a viver em barracões de chão batido, separados de suas famílias e subjugados por dívidas impagáveis e crescentes. Segundo Monteiro Filho da ONG Repórter Brasil, que se especializou no trabalho escravo contemporâneo, ―os empregadores que utilizam mão de obra escrava são, na maioria das vezes, grandes latifundiários [...] quando não são congressistas, membros dos Legislativos estaduais ou do Poder Judiciário‖. Segundo este autor, ―a maioria dos casos de utilização de mão de obra escrava é registrada... nas fazendas de gado‖. O Brasil, como maior produtor e exportador de carne bovina do mundo, e grande produtor agrícola, tem no poderoso agronegócio a marca do trabalho escravo contemporâneo.
Assumir a responsabilidade histórica pela enorme dívida que temos com a África não é, portanto, uma atitude passadista, porém tem um claro rebatimento em componentes estruturais de nossa realidade como nação e em alguns de nossos principais desafios atuais. Esclarecer e discutir este tema representa um direito da sociedade brasileira e de sua maioria afrodescendente em especial. A política externa e a de cooperação com a África precisam incorporar continuamente esta dimensão como fundamento incontornável de enfoques inovadores e emancipatórios, baseados no respeito à dignidade e à liberdade humana.
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(*) Luiz Carlos Fabbri é integrante da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Matilde Ribeiro foi ministra-chefe da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Governo Lula.
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